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Friday, December 13, 2013

HAPPINESS -

Happiness ... Nobody saw me. The light would hide my face. Everything sparkled. On the walls, ideas and scribbles, always the same trips around the world. I used to look at the elephant; he carried a lamp on his back. My mother used to bring me news about her students when she came from school. I felt as if I was an orphan. The students were her children. But my mother loved me. Everyone has their way of loving. Like the elephant, who brought the electricity on his back to my father’s insomniac nights. My firs poem was full of tears. “… the living room door opened to the street, from there I saw my imaginary toys… from there the adventures seemed real”. Now I laugh about those things. Perhaps I was making drama. Perhaps it was the exaggerated sensitivity. And I also laughed, although I cried sometimes because of a scratch on my leg. From the garden stone fountain to the last flowers harvest I was always full of new stories. I dreamed about the teddy bear, fool dream of a hammerhead. My uncle coming around the corner of Friday bringing me in a pinkish package tied with thin string of a fade yellow, a plastic bear. I smiled. My uncle was my father. We could make of him whatever we wanted. The youngest one and I used to race and hide in his truck. We stole candy from his ice cream pallor and painted his face of a good man. The pictures scrawl on our stuffed memory. Like the rural houses painted blue. Happiness are small fractions which come to us in homeopathic doses, endlessly light, at tiny circumstances which sometimes we don´t even realize. Such as a good surprise in the evening, or when night falls. Happiness, de Josette Lassance, tradução de Fabíola Marques da Silva

Tuesday, December 10, 2013

a ponte do galo

agora mesmo passou por aqui o carroceiro - trazia garrafas tão sujas da poeira da vida - ávido pelo olhar do tempo a nuvem quase caía cinza no chão de madeira da carroça - a fêmea que apanhava era a bela e antiga - a égua branca - ela cagava sombria quase correndo por um corredor de lama - da ponte o último suspiro - pedia água à chuva - pedia sonhos aos deuses - corria pelos pântanos da noite às dores de suas coxas suadas - cansada - ferida e triste - recebia a surra merecida - agora mesmo passou por aqui o carroceiro - o chicote na mão agarrado ao fêmur da madeira - na ponte do galo há um rio que morre embaixo de suas pernas - na ponte do galo há um monte de almas penadas - agora mesmo passou por aqui o carroceiro - trazia carcaças de um portal enferrujado - da ponte do galo a chuva limpa o mundo - e nada mais se vê dessa rotina - nessa neblina imunda de injustiça. J.L. dez. 2013

Tuesday, November 19, 2013

moi, novembre 1963


Jorge


Josie, a caçula


Jânice, a primogênita


Josette e a mãe, 1963


aos nove, década de 70.


1963


Jorge, o irmão


Mariana, a bisa


Branca, a avó


Jânice, 1970

Jânice e Jorge - Primeira Comunhão -




Friday, August 23, 2013

a morte das máquinas (J. L. 23/08/2013)

Zulma noite e dia tece. Corta. Grampeia. Estica. Passa. Um alvoroço. No quintal sua cadela prenhe anda de um lado para o outro, imprensada entre o muro e a parede da cozinha. Zulma é mistura. Italiano. Negro e índio. Zulma tem 73 anos. Operou de catarata faz seis meses. Conta cada história! Que um dia viajou e foi entregue por sua mãe para seu padrinho porque a mãe não podia sustentá-la. (pelo que me pareceu ela não teve afagos). Então aprendeu a costurar e a cozinhar. Cozinha como ninguém. Costura além de suas possibilidades. Mas cria muito bem várias calcinhas com bichinhos para vender. Seu filho único, 49 anos, sempre usa cuecas de bichinhos. Ela faz costura de rede, meia, vestido, calça comprida, pijama. Um dia, daqueles inspiradores dias, fez um pijama para uma mocinha e se inspirou tanto que a mocinha passou a usar para ir para a faculdade. Uma daquelas calças compridas frouxas quadriculadas vermelhas que dá uma vontade de não tirar do corpo de tão macia que é. Então. O médico diz a ela que ela não pode mais costurar, nem lavar, nem passar, nem cozinhar. O médico quer que ela morra (de tédio talvez). Porque ela tem tal nódulo na aorta que a incomoda com uma dor nas costas. Ela pede então socorro ao filho que mora com ela e que por isso também fica envolvida em suas tramas em histórias imaginárias e reais. Quando vou lá almoçar em algum domingo (esparsamente vou). Ela me enche de mimos e de comida boa. Eu entro nesse espaço de suas criações. Às vezes adormeço ouvindo tantos causos. (ou pela comida que é um embalo para o sono em dias quentes). Um dia desses ela me disse que havia uma casa onde ela morou durante três meses e que a casa era mal assombrada. Atiravam pedras durante a noite e que havia uma senhora vizinha que conversava com uma árvore de tamarindo. Vocês sabem o que é tamarindo? Aqui no norte chamam de “tamarino”, mas o nome certo, segundo a Wikipédia é tamarindo: tamarindo" vem do árabe تمر هندي translit. tamr hindī (em português, tâmara da Índia), através do latim medieval tamarindus , daí a denominação do gênero, em latim científico, Tamarindus (1753). Mas parece mesmo que tem suas origens nas savanas africanas, embora seja cultivado principalmente na Índia. No Brasil, o fruto é bastante consumido no Norte e Nordeste do Brasil. As folhas são compostas e sensíveis (fecham por ação do frio), flores hermafroditas amarelas ou levemente avermelhadas (com estrias rosadas ou roxas) que se reúnem em pequenos cachos. Talvez por isso essa senhora vizinha dessa casa onde Zulma morou pense que a árvore é seu pai, de tanta sensibilidade que tem a árvore com a possibilidade de tecer diálogos frequentes (a solidão faz tecer raízes verdadeiras entre pessoas, animais e plantas). Zulma passou então apenas três meses na casa, porque mesmo não se mora mais do que isso numa casa mal assombrada. Então de mala e cuia se despediram da casa com um olhar machucado, vendo de longe a vizinha amalucada conversando com seu “pai”. Zulma prepara agora uma colcha de retalhos. Ela coleta pedaços de cada roupa costurada e faz um grande amontoado de tecidos coloridos. Aposentada. Jamais vai desligar suas máquinas porque acredita que a verdadeira natureza da morte esteja em deixar o que se faz com amor para entrar em estado vegetativo. Zulma continua fiando. Tecendo. Cozinhando. Até hoje. Até agora.

entre São Paulo e Rio - viajando

Perto de uma fábrica abandonada, por certo uma fábrica de bonecas: Vejo cabelos. Quase um pouco mais das cinco da tarde – enquanto os navios de carga descansam – as paredes do ônibus vão mudando de cores – há o escurecimento – escutei conversas sobre a máfia chinesa em são Paulo – a lavagem do dinheiro na 25 de março – a mão de obra das Colombianas que costuram 12 horas por dia para ganhar 0, 35 centavos por peça. Passo por minas velhas – ruínas da cidade não muito antiga – 35 anos atrás feitas por prédios disformes usados e cinzentos – me cubro um pouco mais do frio que se mistura ao ar condicionado. Há partes do Rio que não me interessam – tão pouco o hálito de alguém ao lado chupando halls, tudo num aroma tão extremo – fortes aromas – as casas vão ficando triangulares – mais containers com o escrito TEX – China. Aqui recebemos uma espécie de pré-lixo que vem da China Shipping – bugigangas baratas e viciosas sem função – exceto a de virar mais lixo mais tarde, tarde demais – o porto do Rio de Janeiro recebe e logo ao lado um muro de concreto dá origem a uma floresta (?) . Ritmo de um mangue forçado a ser, a pertencer naturalmente a um habitat animal que não pode ser vencido pela continuação desse mesmo concreto porque há de romper-se um dia. Muro quase interminável de rotinas: a flora e a fauna humana em harmonias. Logo acima uma travessia de pedestres (passarela) com ervas daninhas subindo os tubos de ferro e camelôs expondo suas peças retrós. As grandes pontes são turvas e se confundem com águas acinzentadas que correm como espuma. Parecem estagnadas no espaço que percorrem enquanto o ônibus que eu viajo passa sua lataria azul – as janelas e as cortinas parecem zebras azuis, mas suas poltronas limpas e acolchoadas são finas e não me trazem conforto que eu esperava pelo valor que paguei para viajar 6 horas: 70 reais. O piso vermelho do corredor contrastando com o azul das cadeiras parece um tapete (tapetes-vermelhos que aguardam pessoas ilustres). A estrada – árvores plantadas na mesma direção – finas e secas pelo frio – eucaliptos dando um aroma cítrico no caminho em que todos os carros percorrem em velocidades inconstantes. Os passageiros começam a falar ao telefone. Um hábito saído a pouco do relógio do tempo – havia antes um silêncio – como velejar pelos trópicos vazios do mundo – ou andar de trem – a fumaça e o vento batendo nos ossos dos rostos entre a presença metafísica de um ritual de caldeiras – máquinas – e o desbravar a beleza selvagem de sua paisagem real. Estranha essa raiz desconexa de palavras ao vento pelo simples tagarelar – indispor o prazer da viagem da leitura da fotografia momentânea e registrada na retina – ou o apagar dos olhos para fugir da morte do campo – tudo se transforma então num costume comunicativo de repetições desnecessárias – retira-se a essência do passeio - do desaparecimento proposital de alguém que quer buscar um alimento novo para seu espírito arraigado com frequência de horários intranquilos disputados pelo correr dos metrôs e ônibus – a correria para todos os lugares impossibilitados por um fluxo fragmentado e interrompido do trânsito. Não se consegue mais o isolamento necessário para renovação de energias – nessa inversão – nossa casa – parece ideal – para quem carece de aventuras não o é – não substitui um trajeto pelo selvagem encontro que nos permitimos quando saímos para outros lugares – é diferente uma lembrança in lócus do espírito do corpo em movimento – perfeita harmonia – ver – tocar a terra – a água do mar – a chuva nas montanhas – a seiva das plantas – o calor do equador – o frio do sul – a árvore da montanha – os arbustos do cerrado – a fogueira das praias – o aroma apetitoso de uma tarde que se prolonga num acampamento de um lago – a floresta densa tropical – as alvoradas sem cheiro de combustível – quem viaja quer priorizar suas buscas – e vai além do que vê – como monumento da paisagem. Por isso faço as malas com pequenas coisas – livros de bolso – caneta e caderno para esboços de diários de bordo - binóculos – sandálias para trilhas – vestidos para absorver experiências metafóricas com a vida – olhar de grandes profundezas – desde a primeira luz até o anoitecer – tecer unidades desconectadas com seu bem estar interior. Conversar é preciso – ouvir é preciso – olhar é preciso – tudo é tão precioso – que não se deve fazer nada por fazer – nosso presente nos conforta de quaisquer coisas desconfortáveis do passado – e nos abre a mente – como nossas malas interiores – ilusão de que podemos viajar para qualquer lugar do mundo. E o melhor de tudo: Escrever sobre elas. Josette Lassance, julho 2010 Do livro – Crônicas, sonhos & cafés/2011

Tuesday, July 30, 2013

O GUARDIÃO (Do livro O Prédio) JL

Aonde andam os bondes? Por paralelepípedos e trilhos mortos. Olhos fantasmas, ou fantasias? Onde dormem os trilhos? No limbo das pedras falsas sob o asfalto abaixo. Tumba tajá da lama. O bonde abandonou a tribo? A tribo atropelou o bonde? Onde todos desceram? Nos portões de ferro da Soledade. Onde a chuva molha as folhas das mangueiras, onde é tingida de ferrugem a saudade. Um clarão espremido na janela de vidro iluminava uma cadeira gasta onde todos haviam de sentar-se para a espera. Na máquina de escrever, um homem barbado não visitava o barbeiro há algum tempo. Não importa, o tempo é apenas uma faculdade da memória. Aguardava por alguém que preenchesse uma ficha sóbria, e pelo comprimento de sua barba e teias de aranha que circulavam nas beiras da única janela, deveria ter passado muita gente. E foi assim que a campainha tocou; aquele toque seco, sem umidade alguma. Ele olhou para os degraus que um dia foram esculpidos em pedra pura, degraus que poderiam viver durante anos, mas agora carcomidos, esculpem imagens miúdas de insetos. Desceria por aqueles degraus alguém sem nome que se apresentaria numa ficha pálida de costume, talvez para tomar conta daquela casa, que pudesse mudar de vida ao adquirir novos hábitos, como o de recolher noturnamente um urinol furtivo sob o orvalho da madrugada. Num grão de dia muitos foram escolhidos e todos mandados embora, após uma semana de experiência frustrada. O atendente foi abrir a porta mais uma ve , sua mão cabeluda tinha suor, por passar quase o tempo todo sobre as teclas de uma remington 1968; os carbonos jogados exclusos numa lixeira, os blocos alinhados próximo ao arquivo e o cofre no chão sob um tom verde oliva, cor dos uniformes da ditadura. Abriu a porta e viu um rapaz magro, míope, quase sem voz; explicando-se que queria apenas uma oportunidade para trabalhar. Naquela rua movimentada, aquele porão passava despercebido onde um exaustor e um ventilador de parede dividiam espaços. Ninguém ousava passar por ali e espiar, mas parecia que por anos arrastados aquele homem ficava naquela cadeira com uma almofada azul lhe cobrindo as costas, um homem estranho que não tinha amigos; ficava entrevistando pessoas para uma vaga de emprego. O porão era apenas uma pequena parte do todo, em cima um casarão, atrás, um enorme quintal com árvores. Há muito que não se via tintas frescas nas paredes, como se o tempo parado fizesse um ponto ali. Entrei movido por uma curiosidade sem sentido ao candidatar-me. Fiz uma voz trêmula, enfraquecida e insegura, transformei-me num rapaz raquítico, de óculos com lentes fundas, sob uma camada espessa de armação; calcei sapatos surrados, vesti uma camisa comum e uma calça solta, um pente amarelo sobressaía-se sobre a camisa bege, um motivo para ser percebido, levei todos os documentos necessários... Ao sentar-me naquela cadeira, perguntou-me se eu fumava, Respondi não a todas as perguntas. Não, não e não! Sabia que me sentiria dessa forma, qualificado para o cargo. O atendente disparou as respostas na Remington desesperadamente... – Alguma coisa em especial que você goste de fazer? – Quero ter um bom futuro; gosto de ler; um dia farei vestibular para Direito. – Você estuda então? – Terminei o ciclo suficiente para entrar numa universidade, senhor. – Mas aqui não terá tempo suficiente, dará apenas para ler algo algumas vezes em nossa biblioteca.. – Sim, senhor. – Quando começo? – Hoje ainda não, precisamos tratar de seu salário. Será bem pago, afinal precisará mudar-se para um dos aposentos. – Você me dará seus dados e retornará amanhã, às oito, exatamente às oito, entendeu? Aqui somos pontuais! Precisarei também de uma carta de recomendação. Se possível, traga sua mala porque se for aprovado, o emprego será seu. Abri minha pasta e estava tudo lá, Três cartas de empregos anteriores me garantiriam. Saí sem fechar a porta, impregnado de um aroma de passado, o mistério me alimentava. Dobrei a rua e apanhei meu binóculo, que estava escondido embaixo de uma pedra atrás de um muro. Nas ruas daquele bairro ainda resistiam muitos casarões, apesar de muita pressão para a construção de prédios. Mirei a janela de cima, exatamente na sala, a vidraça embaçada só me mostrava uma cortina vermelho escuro, nada mais. O quintal completamente estático. Os muros altos não me davam sinal nenhum. Apressei os passos, tinha que arrumar as malas. No outro dia, diante do porão, toquei a campainha e o homem atendente de barba me recebeu; estava ao telefone e pediu que o esperasse na cadeira; sobre a mesa de mármore comecei a virar algumas páginas de uma edição da década de sessenta da revista seleções. – Venha por aqui! Chamou-me enquanto abria outra porta que dava acesso a outra parte do porão. Com o coração estourando entrei e a porta bateu numa estúpida força. Saímos no quintal, atravessamos todo um pátio e subimos as escadas das costas da casa. Era uma casa muito grande. De súbito, antes de subirmos as escadas, amontoados sob a umidade, vi sapos amarrados nas pernas de uma mesa no quintal, havia uma árvore bem perto e um telhado de zinco amassado cobrindo essa área, uma bacia com sangue e água ficava por lá.. Uma torneira e um tanque gigante e alguns pratos sujos. Ele abriu a maçaneta e fez um rangido de porta no eco do corredor. Andamos por todo esse corredor. Tinha seis quartos alinhados uniformemente e todas as suas portas estavam trancadas. O teto era alto e nas paredes, fotografias de Belém do início do século pareciam querer mostrar o cenário da época. Podia ouvir o barulho do bonde atravessando a rua, com se os personagens fossem vivos num desenho animado. Eu passava e eles se moviam, se eu parasse para vê-los, tornavam-se novamente fotografias. Voltei a caminhar e novamente como um filme em preto e branco as imagens moveram-se com um ritmo, e o mais impressionante era o som das ruas, como as do Ver-o-peso, pessoas gritando vendendo frutas. Se eu parasse diante das cenas o silêncio voltaria. Não me deu vontade de sair dali, aquilo era o início de minha descoberta. Sabia que ninguém nesses anos todos saíra de lá comentando algo; eu mesmo entrevistei muitas pessoas. Há algum tempo venho elaborando esta aventura; era como se tivessem esquecido o que fizeram por ali. Novamente escutei sons, era a cozinheira, eram seus passos na cozinha, trazia algo nas mãos pingando num cutelo molhado de sangue. – Seu quarto é este, falou-me então o homem atendente barbudo do porão. Entrei e percebi que a maçaneta dera uma volta, fui até a porta e tentei abri-la. Inútil, o homem a havia trancado. Um guarda roupa aberto repleto de cabides me esperava, tive de desarrumar as duas malas e colocar peça por peça naquele roupeiro; o espelho de cristal me fazia tremer quando minha imagem refletida parecia sumir em suas repetições. Ouvi então o som de um sino, nesse instante a maçaneta rodou e a porta se abriu, eu havia arrumado a última peça e era como se adivinhasse o tempo das coisas. Dei de cara com o atendente barbudo sentado numa cadeira de balanço. Deu-me um sinal para segui-lo. Fomos até a sala de jantar; na mesa havia doze cadeiras e um prato próximo à cabeceira; indicou-me um lugar e sentei. Não podia acreditar que já haviam passado quatro horas desde que eu chegara àquela casa. Olhei os talheres e as garrafas cuidadosamente arrumados, as taças para o deleite do vinho e da água. Uma terrina branca com um brasão não identificável esperava-me com algo aparentemente cozido de um sabor maravilhosamente frugal. Depois, um prato com legumes e por último um prato com carnes. Fui levado a mais um aposento e nada me fez perceber o que faria naquele lugar. O que realmente haveria de fazer? Porque para quem observa a casa do lado de fora, tem impressão que está abandonada, mas por dentro, tudo em detalhes perfeitamente polidos. Voltamos pelo mesmo corredor que entramos. Olhei e as paredes estavam nuas, não havia mais fotografias de Belém; no lugar, apenas a sensação de que foram retiradas para que eu não as visse ou para que ficasse confuso. Fomos ao final do corredor pegar uns papéis, e tudo me parecia invertido: a posição dos móveis, a ordem dos quartos, a pequena biblioteca. Não sabia mais onde ficava a cozinha e nem ouvira sequer um ruído em que pudesse perceber a presença da cozinheira. Meio atordoado a uma imagem visivelmente dispersa de uma sala de jantar, um vaso de madeira e flores sintéticas posicionavam-se na mesa. Olhei para trás subitamente, toda a mobília reapareceu em sua ordem. Mas os copos, o vinho e a terrina, desapareceram. Perguntei ao atendente barbudo e ele nada me respondeu, apenas ordenou que o seguisse. Depois dos papéis, retornamos ao porão; a mesma porta, a mesma escada, mas, e os sapos, e o cutelo, o sangue, a terrina? Deu-me uma vontade de vomitar... A bacia virada para baixo; nenhum fio próximo à mesa, nenhum sapo e o telhado havia sumido.A cozinheira também. Entramos novamente na casa. Quando passamos para os quartos no final do corredor estava a sala e por mais que eu não tivesse entrado nela, não havia separação de cômodos, nenhuma cortina havia por lá, ao contrário do que espiara da rua com binóculo. A luz entrava direto nos aposentos através dos vidros. Ele apanhou então a chave do banheiro e dos aposentos. Ainda assim não deu um sinal algum do que faria ali. Talvez devesse começar polindo o chão, quem sabe as taças, as mesas, os móveis da sala? Confuso, resolvi não olhar para mais nada; fomos direto para a sala. Um ruído de porta novamente. Olhei rapidamente e senti que por trás, a porta fechara-se. Havia fotografias de homens com roupa de general. Mas, e as cortinas? Onde estariam guardadas? Os móveis ali, como se esperassem visitas. O chá sobre a bandeja de prata, duas xícaras. O telefone tocou, pediu licença para atender na extensão em outro local da casa, deixou-me só na sala e parecia que voltaria novamente ao porão, os passos apressados. O relógio tocou. 18 horas, tentei sair de lá e novamente a porta trancara-se; o chá, não havia fumaça, destampei o bule e nem sinal de chá, as xícaras estavam empoeiradas e aquele homem barbudo era doido e eu tinha que sair dali imediatamente! Fiquei aguardando com frio a decisão do barbudo. Ele voltou e minha cor também; convidou-me para visitarmos a biblioteca, hesitante concordei e caminhamos, mas não poderia entender como aquele quarto, que me serviria de aposento pôde ter virado uma biblioteca; e minhas roupas? Minhas roupas eram de verdade, podia tocá-las. Senti-las. E o espelho de cristal, a cama de ferro, o travesseiro de penas de ganso? Meu Deus. Estaria sonhando? O homem mostrou-me a coleção de livros, ouvi vozes, vinham das palavras escritas, vinham de algum lugar e discutiam ideias. Fechei as páginas e o silêncio voltou. Depois saímos e perguntei sobre meu quarto, apontou-me a porta e entrei. Tudo estava lá como antes; talvez não houvesse tempo, não arrumaria minhas roupas, sairia na primeira oportunidade. Sete horas da noite, pude perceber, o atendente de barba me apontando o banheiro onde deveria assear-me para o jantar, mas que jantar? Os sapos eu já havia comido no almoço e percebi que o atendente barbudo em nada tocara de comida, tampouco em líquidos. Entrei na sala de banho e vi uma banheira. Nossa! Uma banheira com desenhos suaves feitos à mão; coloridos como um toque feminino, cheio de detalhes floridos. Art nouveau? Lavei-me na pia; o rosto, os braços e a mão. Depois que saí do banheiro a cozinheira passava de um lado para o outro, pude ver seu vulto na cozinha. Um trovão anunciava chuva. Quando voltei meus olhos para a mesa, estava servida; uma sopa branca quase sem cheiro me esperava e tive que tomá-la sob os olhares de cobrança daquele atendente de barba; peguei a colher tentando disfarçar os gestos de minha mão trêmula. De onde teria saído aquela sopa? Fiquei tentando imaginar a origem de seu sabor, mas nada fazia sentido, era saborosa e tinha fome. O atendente de barba nada provou, parecia nunca ter fome ou sede, fez mais um sinal e saímos da sala de jantar. Ao sair, nem ousei olhar para trás. Após nossa saída, a chuva desandou, caindo copiosamente, fazia um barulho estridente, e as calhas estavam cheias de folhas, entupidas. Daqui a pouco eu teria uma desculpa para sair para desentupi-las; quem sabe esse seria o meu ofício? O atendente de barba nada me falou, tentei insinuar para que ele abrisse a porta da cozinha. A chuva engrossara, ouvi uns gritos de um dos quartos, um grito horrendo que se espalhava no eco, misturando-se ao barulho da água, então a porta abriu-se com o estrondo de um raio e pude ver uma luz muito forte como a de uma explosão, invadir a escuridão que se formara, após faltar energia e as mangueiras caírem. Lá fora, nas ruas, um tumulto se formou. Malmente eu vigiava a porta da sala e podia enxergar a rua, os carros apitando, as calçadas cheias. Tomei uma angústia de prisão. Mirei o corredor, empurrei o barbudo e saí correndo como um raio. Pisoteei a porta da cozinha e para minha surpresa ela não estava trancada, desci as escadas escorregadias que davam para o quintal, abri a primeira porta do porão, a porta do escritório de espera, a porta que dava para a rua. Ensopado, ainda ensaiei um olhar para as janelas da sala. Pude perceber que alguém me vigiava ao puxar as cortinas pesadas de veludo vermelho escuro, olhando-me com olhar de despedida. Cheguei em casa queimando de febre, bati na porta com força e minha mãe abriu sorrindo, corri até meu quarto, tirei as roupas molhadas e percebi que minha mala havia ficado no casarão, não me importei com isso, enrolei-me em lençóis. Pela manhã saí com meu binóculo minúsculo para tentar observar de longe o que acontecimento. Aquele atendente barbudo ainda estava lá, naquele porão escuro, apenas iluminado por uma lâmpada e uma pequena vidraça onde a luz do dia podia entrar para iluminar a cadeira de espera. Dava para sentir o barulho de sua máquina de escrever, teclando sobre o nada alguma promessa de emprego.
A CABANA É preciso dizer-lhe que tua casa é segura Que há força interior nas vigas do telhado E que atravessarás o pântano penetrante e etéreo E que tens uma esteira E que tua casa não é lugar de ficar mas de ter de onde se ir. Max Martins