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Tuesday, March 21, 2006


O Encantamento

Naquele verde sustentado pelas vigas enferrujadas do edifício assim ele se vestiu, no silêncio o espelho se perfumava de brilho, aquela luz ocre cheia de varizes de teias de aranha diminuíam suas forças, ora entrava devagar a energia e se apagava como a madrugada, insano ele corria para o ferro de engomar, suas roupas tinham mistérios, seriam as únicas coisas com vida por aquelas ruas, ninguém duvida que por ali se pague o medo e se vingue dos padrões, ele é um homem pagão que mistura sua personalidade pérfida com todas as outras idades. Fuma um baseado atrás da cortina, de lá ele olha seu pequeno mundo, entre estrelas confinadas no seu ângulo quadrado de visão que ele submete a visões planetárias. Sua louça sanitária está suja e ele se depila no espelho do banheiro, três azulejos formam o triângulo da pia, depila-se ouvindo o rumor vivo das vilas próximas. Se aproxima do guarda-roupa como um viciado em sapatos, calças e meias, mas não é um viciado, a mesma poeira que perfura a cortina se destila na madeira pouco acetinada do móvel. Ali representa um personagem castrado, um homem, uma esperança de se manter vivo.
O imóvel é velho, úmido, abafado, seu ventilador alcança o ar e corta em mil dejetos a fumaça de sua maconha macerada, o telefone toca a meio fio da rua, o telefone público (seu espaço alvo de ser um projétil de seu vivo esperar ser um espaço privado) em meio ele desce desesperado por sua ligação. Atende, uma voz fina e preguiçosa do outro lado, ele responde com dificuldade mas sem nenhuma ternura.
Volta para o hall, pega seu elevador até o quarto andar e anda por seu quarto como se vagasse, divaga sobre as possibilidades de sua noite, enterrado ali vivo entre seus pertences, sem dinheiro algum que lhe alugue um verbo, que lhe tome uma bebida quente, que lhe pague um jantar decente, que conheça alguém que o deixe às alturas.
Na travessia do quarto para as paredes da sala seu cinismo o interrompe, e se eu não fosse, e se talvez fosse, e se talvez viesse, mas se não viesse? Em pausa agarra suas chaves perfumadas e dá um nó na garganta, sai sem remorsos.
Olha uma vitrine, o manequim é como um sapo morto ressequido, assim ele se sente e se ressente e pressente que sapos podem ser loucos, e que sua loucura o assombra, e que pode não ter a aparência de um sapo morto e que um dia foi um sapo apenas louco, não não é, aquele manequim se projeta em seu interior como um perfume que não sai, o perfume do corpo, o perfume original de sua pele... Ele não se diz mais nada, sai dali olhando para o chão atravessado, em riscos percebe que as membranas de seus dedos estão inchadas, que a calçada tem cortes e entram em suas saliências algumas ervas daninhas, que as calçadas enfim estão rachadas e que a terra se mistura à lama dos esgotos e que as pedras não são mais virgens, mas são pedras trituradas, partes artificiais de cimento dissolvidas por algum baque, pelo triturar dos carros... Mas não se conforma com o inchaço, não se conforma com seus braços, com seu rosto, acaba sentado no meio da marquise, debaixo olha para os fios soltos da última lâmpada rebentada, vê naquilo um gosto quente se ferir porque os fios se encontram e formam faíscas. Formar faíscas é cruzar o pensamento e imaginar que tudo pode ser que tudo pode crer e que sair dali nesse mesmo instante e tentar buscar esse destino pode ser o mesmo que modificar seu ponto de vista.
Ele sai dali à procura do que não tem, quer encontrar em outras pessoas o seu avesso, mas sem nexo percebe que as mesmas pessoas têm objetivos e esses objetivos estão tão bem enterrados em suas caixinhas cranianas mas que pulsam como sonhos, e os sonhos agora divididos entre o ideal e o real se misturam a mundos virtuais, onde os desejos passam por uma camada fina de torpor que se extasia a cada segundo como a faísca na ausência da lâmpada, e depois vazia volta para casa do mesmo jeito que saiu.
Ele, o único personagem dessa história tem registros repetidos, sem escrever em papel algum, sua razão tem ciúme que sua emoção o aliene e entre sem medo nesse mundo sem volta da esterilidade passional, inverso, emoção e razão se fundem sem limites, são linhas paralelas, linhas de dualidade que põem em risco seu processo de consenso.
Ele vê do olho mágico algo a se impor numa das ruas que caminha, alguém parado olhando para o silêncio, alguém que masturba sua turbulência, turvo adentra seu espírito e se observa o quanto desesperado alimenta-se desses desejos...
Ele deseja e vê. O ombro despido, a pele tem ânsia, o rosto escondido na sombra que se projeta um poste entre os fios emaranhados, rota de papagaios perdidos, o cabelo acompanhando o vento quase frio da madrugada, a pensar na solidão que faz olhar o destino de seus olhos um percorrer único, como não estar ali por exemplo, ficar fitando mas o pensamento cheio de palavras.
Assim ele viu alguém, prestes a conhecê-lo, estava ali como se o esperasse, e sem pressa ficou olhando na distância que se fez permitir-se e aproximar-se fazia parte de uma energia que nos instantes que se seguissem poderiam possuir um encanto próprio.
Ao perceber-se invadida por uma sensação perigosa ela se virou e o olhou nos olhos, sem vê-los inteiros, vívidos por umedecer-se involuntários, algo a fez caminhar pelo escuro e ele foi atrás e perguntou seu nome, ela viria assim quase sem nome por isso nada respondeu então beijaram-se, com a intensidade de suas esperanças, beijaram-se ali mesmo no asfalto e tudo se prendeu a um só choque, a lâmpada rebentada do alto da marquise, seus fios pegaram fogo, e o fogo cresceu como a barba dos judeus ortodoxos, cresceu e formou uma enorme mancha no céu escuro, um grande incêndio tomou conta daquela rua, então ouviram-se estrondos daquele beijo, daquele incêndio de fios ansiosos, explodiram as paredes, explodiram as vidraças, explodiram as cadeiras, explodiram as calçadas.
E nada mais se viu na manhã seguinte. Todos estavam desencan-tados.

Josette Lassance nasceu em Belém do Pará em 1962. Graduada em História e Artes Plásticas na UFPA. Pós graduada em Arte-Educação. Participou de várias publicações em revistas como: Fundo de Gaveta, Belém/PA (1982); Poesia do Grão Pará, Rio de Janeiro/RJ (2001); Carlegarius (2002); Revista Viva Vaia, Porto Alegre/RS (2003); Revista de Literatura Brasileira, Rio de Janeiro/RJ (2003); Pará Zero-Zero, Belém/PA (2004), entre outras. Nos últimos anos fez parte do Projeto Quarentena de Arte "Açúcar Invertido", Funarte - RJ (2002); Projeto Circuito Amazônia Celular de Cultura (2003); 49ª Feira do Livro de Porto Alegre (2004).

Livros Publicados
Vida de Bruxa - Poemas (1992)
Os Gatos Nus Passeiam sobre os Telhados Sujos - Contos (1994)
Galeria dos Maus - Poemas e Crônicas (1999)
Prazer Clandestino - (Cartões Fotográficos de Poesia 2001)
O Prédio Contos (2002)
No Último Desejo a Carne é Fria - Contos (junto a Olga Savary, Carlos Correa e Israel Guttemberg) (2005)