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Friday, August 23, 2013
a morte das máquinas (J. L. 23/08/2013)
Zulma noite e dia tece. Corta. Grampeia. Estica. Passa. Um alvoroço. No quintal sua cadela prenhe anda de um lado para o outro, imprensada entre o muro e a parede da cozinha. Zulma é mistura. Italiano. Negro e índio. Zulma tem 73 anos. Operou de catarata faz seis meses. Conta cada história! Que um dia viajou e foi entregue por sua mãe para seu padrinho porque a mãe não podia sustentá-la. (pelo que me pareceu ela não teve afagos). Então aprendeu a costurar e a cozinhar. Cozinha como ninguém. Costura além de suas possibilidades. Mas cria muito bem várias calcinhas com bichinhos para vender. Seu filho único, 49 anos, sempre usa cuecas de bichinhos.
Ela faz costura de rede, meia, vestido, calça comprida, pijama. Um dia, daqueles inspiradores dias, fez um pijama para uma mocinha e se inspirou tanto que a mocinha passou a usar para ir para a faculdade. Uma daquelas calças compridas frouxas quadriculadas vermelhas que dá uma vontade de não tirar do corpo de tão macia que é. Então.
O médico diz a ela que ela não pode mais costurar, nem lavar, nem passar, nem cozinhar. O médico quer que ela morra (de tédio talvez). Porque ela tem tal nódulo na aorta que a incomoda com uma dor nas costas. Ela pede então socorro ao filho que mora com ela e que por isso também fica envolvida em suas tramas em histórias imaginárias e reais.
Quando vou lá almoçar em algum domingo (esparsamente vou). Ela me enche de mimos e de comida boa. Eu entro nesse espaço de suas criações. Às vezes adormeço ouvindo tantos causos. (ou pela comida que é um embalo para o sono em dias quentes).
Um dia desses ela me disse que havia uma casa onde ela morou durante três meses e que a casa era mal assombrada. Atiravam pedras durante a noite e que havia uma senhora vizinha que conversava com uma árvore de tamarindo.
Vocês sabem o que é tamarindo? Aqui no norte chamam de “tamarino”, mas o nome certo, segundo a Wikipédia é tamarindo: tamarindo" vem do árabe تمر هندي translit. tamr hindī (em português, tâmara da Índia), através do latim medieval tamarindus , daí a denominação do gênero, em latim científico, Tamarindus (1753). Mas parece mesmo que tem suas origens nas savanas africanas, embora seja cultivado principalmente na Índia. No Brasil, o fruto é bastante consumido no Norte e Nordeste do Brasil. As folhas são compostas e sensíveis (fecham por ação do frio), flores hermafroditas amarelas ou levemente avermelhadas (com estrias rosadas ou roxas) que se reúnem em pequenos cachos.
Talvez por isso essa senhora vizinha dessa casa onde Zulma morou pense que a árvore é seu pai, de tanta sensibilidade que tem a árvore com a possibilidade de tecer diálogos frequentes (a solidão faz tecer raízes verdadeiras entre pessoas, animais e plantas).
Zulma passou então apenas três meses na casa, porque mesmo não se mora mais do que isso numa casa mal assombrada. Então de mala e cuia se despediram da casa com um olhar machucado, vendo de longe a vizinha amalucada conversando com seu “pai”.
Zulma prepara agora uma colcha de retalhos. Ela coleta pedaços de cada roupa costurada e faz um grande amontoado de tecidos coloridos. Aposentada. Jamais vai desligar suas máquinas porque acredita que a verdadeira natureza da morte esteja em deixar o que se faz com amor para entrar em estado vegetativo.
Zulma continua fiando. Tecendo. Cozinhando. Até hoje. Até agora.
entre São Paulo e Rio - viajando
Perto de uma fábrica abandonada, por certo uma fábrica de bonecas: Vejo cabelos. Quase um pouco mais das cinco da tarde – enquanto os navios de carga descansam – as paredes do ônibus vão mudando de cores – há o escurecimento – escutei conversas sobre a máfia chinesa em são Paulo – a lavagem do dinheiro na 25 de março – a mão de obra das Colombianas que costuram 12 horas por dia para ganhar 0, 35 centavos por peça. Passo por minas velhas – ruínas da cidade não muito antiga – 35 anos atrás feitas por prédios disformes usados e cinzentos – me cubro um pouco mais do frio que se mistura ao ar condicionado.
Há partes do Rio que não me interessam – tão pouco o hálito de alguém ao lado chupando halls, tudo num aroma tão extremo – fortes aromas – as casas vão ficando triangulares – mais containers com o escrito TEX – China. Aqui recebemos uma espécie de pré-lixo que vem da China Shipping – bugigangas baratas e viciosas sem função – exceto a de virar mais lixo mais tarde, tarde demais – o porto do Rio de Janeiro recebe e logo ao lado um muro de concreto dá origem a uma floresta (?) . Ritmo de um mangue forçado a ser, a pertencer naturalmente a um habitat animal que não pode ser vencido pela continuação desse mesmo concreto porque há de romper-se um dia.
Muro quase interminável de rotinas: a flora e a fauna humana em harmonias. Logo acima uma travessia de pedestres (passarela) com ervas daninhas subindo os tubos de ferro e camelôs expondo suas peças retrós.
As grandes pontes são turvas e se confundem com águas acinzentadas que correm como espuma. Parecem estagnadas no espaço que percorrem enquanto o ônibus que eu viajo passa sua lataria azul – as janelas e as cortinas parecem zebras azuis, mas suas poltronas limpas e acolchoadas são finas e não me trazem conforto que eu esperava pelo valor que paguei para viajar 6 horas: 70 reais. O piso vermelho do corredor contrastando com o azul das cadeiras parece um tapete (tapetes-vermelhos que aguardam pessoas ilustres).
A estrada – árvores plantadas na mesma direção – finas e secas pelo frio – eucaliptos dando um aroma cítrico no caminho em que todos os carros percorrem em velocidades inconstantes. Os passageiros começam a falar ao telefone. Um hábito saído a pouco do relógio do tempo – havia antes um silêncio – como velejar pelos trópicos vazios do mundo – ou andar de trem – a fumaça e o vento batendo nos ossos dos rostos entre a presença metafísica de um ritual de caldeiras – máquinas – e o desbravar a beleza selvagem de sua paisagem real.
Estranha essa raiz desconexa de palavras ao vento pelo simples tagarelar – indispor o prazer da viagem da leitura da fotografia momentânea e registrada na retina – ou o apagar dos olhos para fugir da morte do campo – tudo se transforma então num costume comunicativo de repetições desnecessárias – retira-se a essência do passeio - do desaparecimento proposital de alguém que quer buscar um alimento novo para seu espírito arraigado com frequência de horários intranquilos disputados pelo correr dos metrôs e ônibus – a correria para todos os lugares impossibilitados por um fluxo fragmentado e interrompido do trânsito.
Não se consegue mais o isolamento necessário para renovação de energias – nessa inversão – nossa casa – parece ideal – para quem carece de aventuras não o é – não substitui um trajeto pelo selvagem encontro que nos permitimos quando saímos para outros lugares – é diferente uma lembrança in lócus do espírito do corpo em movimento – perfeita harmonia – ver – tocar a terra – a água do mar – a chuva nas montanhas – a seiva das plantas – o calor do equador – o frio do sul – a árvore da montanha – os arbustos do cerrado – a fogueira das praias – o aroma apetitoso de uma tarde que se prolonga num acampamento de um lago – a floresta densa tropical – as alvoradas sem cheiro de combustível – quem viaja quer priorizar suas buscas – e vai além do que vê – como monumento da paisagem.
Por isso faço as malas com pequenas coisas – livros de bolso – caneta e caderno para esboços de diários de bordo - binóculos – sandálias para trilhas – vestidos para absorver experiências metafóricas com a vida – olhar de grandes profundezas – desde a primeira luz até o anoitecer – tecer unidades desconectadas com seu bem estar interior. Conversar é preciso – ouvir é preciso – olhar é preciso – tudo é tão precioso – que não se deve fazer nada por fazer – nosso presente nos conforta de quaisquer coisas desconfortáveis do passado – e nos abre a mente – como nossas malas interiores – ilusão de que podemos viajar para qualquer lugar do mundo. E o melhor de tudo: Escrever sobre elas.
Josette Lassance, julho 2010
Do livro – Crônicas, sonhos & cafés/2011
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