Translate

Friday, January 19, 2007

O Prédio (conto extraído do livro O Prédio, 2002, de Josette Lassance, Capa: fotografia de Alberto Bitar)



602
Acabara de se mudar para o sexto andar mais uma senhora que mora sozinha com seu gato persa, mania de tapetes persas e gatos. Na bagagem perucas usadas de todas as cores em cima de um manequim negro. Na era do rádio fora uma cantora, por isso mesmo atrás dos estúdios ainda guarda suas vaidades.. as revistas da época guarda na gaveta de uma eletrola rotação 45, de resto uma mobília cansada que ainda conserva com carinho. Um binóculo de cobre que ganhou de presente de seu avô. O caminhão estacionou bem na porta, largo, tomava conta quase da rua toda, uma via secundária esticada por um olho em perspectiva.

Esperava pelo porteiro dar o aval, depois subiria pelo elevador de serviços todas as suas tralhas. Um cílio postiço saiu do lugar e a senhora de setenta e três anos não perdendo a compostura inclinou-se no espelho carcomido da sala de recepção e propôs a consertar seu erro, teria colocado com pressa, ainda no casarão onde morava, derrubado para mais uma construção de um prédio moderno.

Lá funcionariam umas lojas de departamentos, com um enorme estacionamento e uma boate de vidro fumê tiraria a monotonia das noites e após 25 anos de aluguel e os donos terem morrido, a casa fora vendida, sem que os defuntos esfriassem, pelos filhos por uma imobiliária famosa.

Agora ajeita a maquiagem, o pó, o rouge forte num de seus rostos envelhecidos.

Depois da notícia, viu-se sentada no nada e a maquete a lhe sorrir embriagada de projetos, anti-projeto da senhora em desfazer-se dispersa no que fora todo esse tempo, a casa a despedaçar-se pelos ruídos dos tratores loucos comendo as lembranças, viu-se lixo, como o barro que se desfizera, do pó ao pó. O mijo da noite anterior ainda fedia nas paredes.

Um som turvo a fez voltar, era a voz do porteiro dizendo que o elevador já a aguardava. Com o gato persa no colo entrou no elevador com uma sacola enfeitada de margaridas, o aço lhe refletiu a imagem 4 vezes, o tom colorido da bolsa e o vestido branco com seus movimentos, o gato miava e tocou o sinal de descer: 6º andar. Caminhou com as chaves nas mãos e abriu a porta do apto. Seu novo lar a aguardava vazio, nada que a despertasse lembranças. As bagagens foram subindo com os empregados da transportadora.

301
Sherlock Holmes, um garotinho de oito anos, míope quase de nascença, foi entrando no elevador e percebendo com sua lupa, os pêlos cinzas do gato persa espalhados no tapete. Examinava minúcias da passagem, desde as marcas digitas nas paredes metálicas... um garoto manchado de sardas, segundo sua mãe, o gênio do colégio.

Suas vozes misturaram-se ao eco do corredor e foram diminuindo de tamanho à medida em que abriam a porta. A sala impecável, os quartos impecáveis; seu pai um militar, sua mãe, dedicada dona de casa que se ocupava com as tarefas domésticas.

Um aquário com peixes azuis quebrava a monotonia do ambiente, peixes azuis silenciosos percorriam dos navios abandonados entre esqueletos de piratas feitos de borracha.

A televisão era um enfeite, a biblioteca, um prazer medido pelos pequenos olhos do menino, como o de satisfazer suas curiosidades.
Do terceiro andar onde moravam, o pequeno caolho se debruçava nas grandes grades da janela a viciar-se por olhar a rua, a banca de revista, o playground funcionando, os seis andares do prédio ele tinha impressão de vê-los sob as nuvens e quando passavam no céu o prédio andava pelo vento fresco das nove horas da manhã, enquanto os garotos ferviam pulando atrás de uma bola.

302, 403, 202
Outros apartamentos vazios, por alugar, o vento fazia eco quando entrava nas frestas das janelas empoeiradas, o nada por vir das paredes, os azulejos em fila sem gorduras, as torneiras secas.

101
Dava para sentir o bafo úmido dos carpetes invadindo a voz fina e fraca da mulher com a maior paciência do mundo tentando acordar seu marido para tomar o xarope de groselha; um velhinho que passava o dia assistindo desenho animado, telejornal, filme, novela, programa de auditório, novela, jornal, filme.. até os grânulos abstratos da imagem aparecerem como um todo.

201
Três jovens morando sem os pais radicalizavam um andar: maconha, livros, rituais pagãos psicodélicos. Chegavam na madrugada subindo pelas escadas com suas garrafinhas de cerveja compradas na loja de conveniências. Um incenso destilava sua aura mística enquanto se deliciavam num mantra.
Correr antes que o tempo os freasse era sentir-se. Um sopro livre, um encontro com a paixão, um tiro no escuro: flashes e a luz a repetir-lhes a aparência, entre viadutos e carros, viadutos e carros, eles gozavam da noite esguia, de lá num ângulo lânguido reverberavam seus sonhos, a ilusão de todos os jovens, de dentro de seus corpos a mesma vibração, janelas moldadas de suas imaginações, de lá imagens ímãs em P & B.
De dentro da sacola eles tiravam o horizonte e compravam cúmplices, vendendo seus anti-heróis na noite. Era como sentir o ar rarefeito e um calor na alma, passando todos eles como enfermos queimando em febre, seguiam as ruas da rotina lado a lado de suas quebras de tabu, e os ônibus frenéticos não paravam na paisagem da rua, passavam em velocidades frias, eles que não dormiam viam tudo com seus invisíveis guarda-chuvas negros a água cinzenta a passar pelas pernas em redemoinhos, um festival de corvos. O olhar das pessoas trancadas nos apartamentos tinha um pouco de silêncio sedutor, diziam tudo o que escondiam em sua boca. Sair e entrar eram desejos. Um fetiche usar o sentido anti-horário do mundo

304
Um homem suspeito, 45, solteiro, com uma enorme sobrancelha sempre tropeçava nas garrafas deixadas ao longo das escadas e reclamava alto, morava no terceiro andar mas fazia questão de ir pelas escadas, às seis da manhã descia e dava bom dia ao porteiro, ia se exercitar e depois retornava com um cigarro na boca, mal humorado e o jornal do dia dobrado em suas axilas suadas.
Descia às nove para o trabalho e só retornava uma hora da manhã, nunca comparecia às reuniões de condomínio. Desapareceu. Três dias. O porteiro chamou os bombeiros, arrombaram a porta do apartamento: o homem estirado com as mãos pálidas segurando o coração arregalava um olho.

Foi encontrado no seu criado mudo, pacotes de cigarro com teor altíssimo de nicotina, muitas garrafas pequeninas vazias de uísque de avião com suas tampas abertas, tinha duas pontes de safena. Um livro de bolso na cabeceira de sua cama: . A geladeira aberta vazia. Nenhum móvel, exceto uma cadeira pintada de negro, uma mesinha de centro e uma almofada.
Remédio para dormir, para fígado, estômago, garganta, remédio para alergia, remédio para gripe.

603
Uma família perfeita: pai, mãe, filho, filha, bordados os dias da semana nos guardanapos laranjas, a geladeira enfeitada de bichinhos com ímãs, bordados como um cimento que imprime seu lacre, guardar mistérios domésticos, domesticados às vozes de diálogos familiares, nenhuma contravenção, perfeitos à ira de deus, impressos num jornal digno de domingo, digno de rosas, flores vermelhas, almoços nos jardins, passeios de carro pela praia, piquenique nas florestas.

O pai médico do SUS, a mãe professora de gramática de escola pública, os filhos estudam no mesmo colégio de freiras, sempre saem impecáveis quando ao tomar seu café às sete, entram no fiat 93 do pai. A menina estudiosa, cabelos lisos, sempre penteados, usa xampu para cabelos secos, o menino usa cabelos bem curtos para dar impressão de limpeza. Limpeza é a exceção do mundo. 12 e 13 anos, idades e idéias revestidas de idéias sobre idéias sob idéias, sob inconscientes rompidos pelo consciente.

501
Giordani tem um gato, diferente da Sra. do 602, não é um gato persa cheio de frescuras. O artista tem um gato torto, encontrado semi-morto, semi-vivo, num buraco de um esgoto destampado, Um gato magro, negro, vira-lata. Um gato torto porque quebrou suas costelas ao levar pedradas de um transeunte. Um gato magro porque não tolera razão, torce o nariz e assim só come às vezes, quando o artista decide dar-lhe algum resto de bife do almoço, ou pedaços de batatas fritas.

O gato arranha seu rabo fino na esperança de fiapos de rosbife da sobra de suas marmitas. O artista é ausente, apenas idéias e estórias, tem em seu arquivo uma fotografia do gato no lugar onde o encontrou, ainda com seus detalhes vermelhos de sangue em contraste com tons amorfos da calçada.
Seu apartamento é espaçosos mas não tem onde sentar, nenhuma tela em branco, ficam no chão os registros, às vezes ficam no banheiro, escritos à mão nos azulejos num aramaico subjetivo..

O gato passa entre as garrafas azuis cheias de líquidos em quantidades diferenciadas, em turbulência se modificam as silhuetas esqueléticas do felino a cada passo que o artista vê sem piscar em seus movimentos desequilibrados, porque debruçado ao chão, as três garrafas lhes parecem vivas e em pé transformam em miragens, suas imagens reais. O artista vê em seu mundo fundo invertido na garrafa e o aniquila com seu olho cru e o distorce, diminui o volume da tolerância, explode em dejetos, a tela não é mecanicamente fluída, não lê nada, letreiros abstratos, não pinta, acelera-se em câmara lenta um retardar a seco..

Rompe a balbúrdia, extermina a vingança, veste-se de rato nas orgias noturnas e determina que o artista é bandido na mesma proporção da vida, bandido rato que não brinca, mas oblitera com sua máscara a julgar-se um corruptor de sentimentos.

5º andar. Apartamento alugado. Três meses de condomínio por pagar, o artista espera vender suas últimas obras, potes com suposições, escritos em esperanto, supostos abortos do tempo escondidos sob a superfície fina do óleo de linhaça, engarrafar loucuras são projetos suicidas...

Morar de aluguel é se excluir de um espaço visual onde a rua é uma infinita razão para infinitas idéias de tortura, placas luminosas roubam o silêncio dos olhos, roubam a paz da limpidez onde comprar não é nenhum perigo e se limitar a ver consiste em sua verdadeira liberdade.

Morar na rua é desligar-se da morada, desligar-se de domínios, é jogar-se à esmo pelas idéias do contratempo, tempo anti-matéria, um tempo não real, subjetivo, mas um tempestuoso inimigo do conforto.

O artista mora e não morre, seu tédio vai além dessa chacina assassinato-ruas-frio-tempestuosidade-anonimato de identidades-amontoado amorfo de cérebros excluídos e carnes concisas deitadas na costura fúnebre dos jornais machados de sangue das notícias. Morar na rua é livre-se.

O artista morre se não fizer de si um cirurgião, ali ele constrói sem medidas seus franksteins, remendo de estrelas, rascunhos de mentiras, rasura de ilusões.

Um pacto entre o real e a criação,

Enquanto isso lá fora o mundo se divide ao meio. O prédio e a rua. Dentro e fora dos portões avassaladores de ferro fundido. Lá fora a chuva na sua água absoluta começa a mudar o teor do domingo adentrando na rotina dos moradores.

Chove sem parar e a cidade morre envolta numa alucinação coletiva.

Os carros passam quase arrastando suas bundas nas enchentes. Todos se trancam e escutam o ronco invisível do trovão, a luz fluorescente quem vem antes no risco de um silêncio
Uníssono, encorpado de eletricidade.

É bom separar-se em átomos e exploir-se dessa paisagem negra da cidade, dessas paredes sujas de fumaça e limo,

Bom é limpar os olhos nas lembranças nuas do campo, onde poder imaginar-se num correr de um puro sangue no pasto entre a linha do horizonte a fundir-se como uma trajetória neon em prata rasgando o céu de ponta a ponta e um raio a cair num lago onde costuma-se passar os domingos pescando..

E esse cavalo a correr agoniado na corporificação de sua ansiedade, as crinas a lhe caíres aos caos dos olhos cintilantes.

Encobrir-se de toda essa aura nesse momento é único, é como envolver-se na velocidade de seu corpo lustroso e úmido pelas primeiras gotas, corpúsculos de uma chuva musculosa.

Deixar-se penetrar nesse semblante de dentro de uma casa feita de pedra, embaixo de cobertores é sonhar sem medo que a tarde depois do crepúsculo cairá e se servirá de estrelas à noite mais negra do mundo.

Enquanto isso as padarias, os pontos de café, de loteria esportiva, o ponto de ônibus, taxis, ambulantes, os pedintes, escravos do medo e da desordem urbana e cheia de metáforas futuristas, ilumina a tarde o movimento vivo de pedestres agoniados entre o fim de tarde, fim de trabalho e a noitada recheada de tv.

As plantas das sacadas passam por metamorfoses, umedecidas as texturas verdes de suas bocas transpiram pólens e suas flores suadas beijam o ar mostrando suas florestas nuas. Entre cores escarlates a mosca solitária pousa exausta. Mais um dia se passou e nada aconteceu de verdade. Todos empurram a vida com a barriga.

A mãe, o pai, o filho, a empregada, a velhinha, o casal de velhos, os jovens, os gatos, o artista, o morto, vivem envolvidos em suas angústias e suas carreiras de felicidade, a selva mãe evidente os carrega de um lado para o outro. O trabalho e a chance de ascensão elevam o grau de cumplicidade com o sistema, que os obriga criar mecanismos que os confortem a passar o ano imaginando o dia de amanhã, e seus status sustentarem suas vaidades. O que se esvazia é o medo da penumbra, o olhar puro de seus espelhos sem mágica, e seus desejos aguçados de fome.

Na realidade vivem neles o prédio, manhã após manhã, noite a pós noite, silêncio após silêncio, imersos na solitária sensação de eternidade. Ninguém os devolve à entrega, o que é absolutamente necessário é se possuir a certeza de que se deve assassiná-la.








No comments: