À SOMBRA DO HORÁRIO
Domingo. O sol não aparece igual, tem um sabor diferente, um gosto de fruto, fruta mais silvestre, gosto da chuva deixado pela tarde de sábado,
Subi a rua para comprar pão, uma bicicleta vermelha no portão enferrujado de uma casa me chamou atenção, ela parecia livre, sem cadeados, e a casa se refugiava no final do terreno, um jambeiro deixava cair suas flores azedas formando um tapete pelo chão, a mesma cor da cereja, a tonalidade da bicicleta, o banco feito de juncos embaixo da sombra. Minha vontade era de ficar.
Domingo, por ter um sabor diferente, nos faz diferentes da paisagem em si. Todos os dias passo por aquela casa, a bicicleta inclusa livre, vermelha como uma cereja, o banco feito de juncos abaixo da sombra, a casa com a mesma sombra do horário em que me desloco para a padaria, menos a vontade de ficar.
A vontade de ficar é em si, livre, inclusa no domingo, como o sol que não aparece igual a todos os dias, um fruto proibido, sentar é tão simples e tão de complexo sentido que meu olhar apenas se desloca entre a vontade e o seguir, o pão é o percurso, o objetivo da saída, do passeio pela calçada, pelo olhar atravessando a matéria das cores, a roda da bicicleta, seus raios como o do sol, sua cor, entre a cereja e o chão florido, cor do tapete úmido, formado pelo jambeiro, fruto mais silvestre, gosto da chuva deixado pela tarde de sábado.
O banco de juncos me convida para uma conversa, um monólogo, um discurso, as palavras soltas, livres como a bicicleta sem cadeado, incluso o silêncio e o frescor da sombra, menos o pão ainda não comprado, obstruído pela passagem, o entrar no jardim, um jardim trancado por um portão enferrujado, mas uma vontade imensa de ficar e continuar minha conversa íntima, um deslocamento entre o pensamento e a não obstrução que o ruído causa, menos o distúrbio de um dia comum de semana, impróprio para um domingo convidativo de um jardim a me esperar sentar-me em suas dúvidas e comodidades, um pedacinho de oásis de terreno solto, desamarrado do concreto armado, um sabor diferenciado de destino, não o de comprar pão ao subir a rua, mas encontrar o paraíso e me deslocar para o silêncio de mim mesma, monólogo tecido próximo a uma casa num final de terreno tranqüilo de um início de uma manhã de domingo.
A bicicleta vermelha, parada, não cansada, uma bicicleta que ao adornar uma micro paisagem de descanso, ajuda o jambeiro a colorir o verde escuro sombreado pelas folhas grandes e pelas folhas amareladas caídas no chão junto ao imenso tapete, um tapete que podia voar e me levar às nuvens, um tapete feito de flores de um pequeno jardim.
Mas o gosto de chuva deixada pela tarde, o gosto silvestre é feito de uma efêmera passagem pela rua num trajeto comum de ir comprar um pão na padaria, que por acaso foi num domingo, que não é diferente por ser domingo um dia que parece ter um sol de uma outra tonalidade, a bicicleta vermelha poderia não estar ali, encostada num muro cheio de formigas tachis, e um portão enferrujado, onde o cachorro sempre por mijar no mesmo lugar fez uma enorme fenda, a fenda punhal do ferro se desfazendo numa lança, uma espada de um guerreiro grego, lugar onde o mijo carcomeu com seu ácido líquido, um pedaço do portão.
O banco ainda é convidativo, juncos, sombras, flores, tapetes, jambeiros, bicicleta vermelha, gosto de cereja, domingo, tudo parece tão familiar que respiro fundo e sinto o cheiro de almíscar me invadindo, parecido como cheiro que algumas tardes têm em comum, em que o sol se atira certeiro sobre a parte mais macia de seu limbo e nos transporta a uma sensação em que tudo parece um imenso lago, tranqüilo, reverberando sua imagem sobre sua margem, um grande cosmos de plantas e flores, e o gosto ingerido de uma manhã fresca, segundos de vida intensificados pela vontade de ficar, livre de ter aonde ir.
josette lassance
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Thursday, June 29, 2006
O HOMEM DO CAFÉ
Mário de prata. Assim era denominado o homem que servia cafés. Ele habitava em seus redemoinhos de pedra, entre gigantes e imaginativos quadros de Picasso, colados dos sonhos de tv, a sala imaginativa desordem, os quadros de artistas consagrados, servia café em frente da usina, no turbilhão onde as bicicletas se encontram numa paradisíaca parada de ônibus.
Se havia para onde voltar seria o lugar onde colocava sua máquina de fazer café todos os dias. Um lugar escondido de todos. Acordava às cinco da manhã com sua mulher imaginária e esquentava o fogo. A lenha coletada pelas ruas. Pedaços de paus fortes, tirava a madeira dos esqueletos dos sofás jogados, base de geladeiras, pernas de cadeira, livros velhos, tentava antes decifrar seus códigos, mal sabia soletrar, via as páginas vazias de conteúdo e milhões de letrinhas desconexas.
Tudo iria para o fogo. Sem nenhum protocolo. E faria dali seu melhor café. Pegava sua bicicleta cargueira e punha-se a pedalar pelas ruas mais difíceis. Ficava olhando distraidamente, quando o sinal abria para os carros, para as paredes das casas, suas janelas, gostava de sentir-se em casa. As janelas tinham sensações familiares e eram como oásis perfeitos, as janelas azuis-claro em suas tonalidades mais amenas, principalmente, mesmo fechadas, traziam porções de ternura que fugiam à realidade intranqüila das ruas e da vida das pessoas. As janelas azuis sempre estavam acompanhadas de varandas e algumas porções de quintais com jasminzeiros floridos.
Ia para sua parada vender o café na usina. A usina tinha algo mais de cem anos, e suas letras ainda vivas, feitas num contorno de ferro em formas itálicas, trazia o cheiro de sua essência de usina. O próprio nome usina esvazia sua forma moderna e nos traz um desejo de lembrar de algo que se perdeu, e que está no ar, naquele pedaço de prédio amarelo-sinônimo de muros caiados, o barulho das máquinas, a cigarra ao meio dia, uma parte antiga no meio da cidade, um romântico vazio que ainda ronda o espaço circunscrito de concreto aberto, de planos retos, racionalizados pelas circunstâncias.
Ele como vendedor de café, sempre acordava bem humorado, a olhar para o sol e não para sua casa (imaginariamente algo que se perdeu num recorte de novela das oito, o uísque sempre pronto para tomar após um dia de estresse).
Ele só vende café, e sua simplicidade se faz na hora de sua sobrevivência ser vencida a cada dia em que acorda de bem com a vida. O melhor café do mundo, cumprimentado por seus fregueses com um sorriso, o espírito elevado de um homem sábio, que atravessa meia cidade em cima de uma bicicleta pesada, driblando a falta de ciclovias e motoristas impulsivos.
A usina se perde em cheio na extravagância do pôr do sol, e ainda se ouve a sirene das dezoito horas, enquanto fecha suas portas encerrando mais um dia de trabalho. As bicicletas em massa se movem, misturando-se momento clímax de saída, o homem do café já está em sua casa, preparando maravilhas para seu café mágico do dia seguinte.
Justo ou não, o mundo segue seu curso, e subjetivamente os destinos de seus moradores é o de coexistir com todas as suas diferenças.
Josette Lassance
Junho de 2006
Mário de prata. Assim era denominado o homem que servia cafés. Ele habitava em seus redemoinhos de pedra, entre gigantes e imaginativos quadros de Picasso, colados dos sonhos de tv, a sala imaginativa desordem, os quadros de artistas consagrados, servia café em frente da usina, no turbilhão onde as bicicletas se encontram numa paradisíaca parada de ônibus.
Se havia para onde voltar seria o lugar onde colocava sua máquina de fazer café todos os dias. Um lugar escondido de todos. Acordava às cinco da manhã com sua mulher imaginária e esquentava o fogo. A lenha coletada pelas ruas. Pedaços de paus fortes, tirava a madeira dos esqueletos dos sofás jogados, base de geladeiras, pernas de cadeira, livros velhos, tentava antes decifrar seus códigos, mal sabia soletrar, via as páginas vazias de conteúdo e milhões de letrinhas desconexas.
Tudo iria para o fogo. Sem nenhum protocolo. E faria dali seu melhor café. Pegava sua bicicleta cargueira e punha-se a pedalar pelas ruas mais difíceis. Ficava olhando distraidamente, quando o sinal abria para os carros, para as paredes das casas, suas janelas, gostava de sentir-se em casa. As janelas tinham sensações familiares e eram como oásis perfeitos, as janelas azuis-claro em suas tonalidades mais amenas, principalmente, mesmo fechadas, traziam porções de ternura que fugiam à realidade intranqüila das ruas e da vida das pessoas. As janelas azuis sempre estavam acompanhadas de varandas e algumas porções de quintais com jasminzeiros floridos.
Ia para sua parada vender o café na usina. A usina tinha algo mais de cem anos, e suas letras ainda vivas, feitas num contorno de ferro em formas itálicas, trazia o cheiro de sua essência de usina. O próprio nome usina esvazia sua forma moderna e nos traz um desejo de lembrar de algo que se perdeu, e que está no ar, naquele pedaço de prédio amarelo-sinônimo de muros caiados, o barulho das máquinas, a cigarra ao meio dia, uma parte antiga no meio da cidade, um romântico vazio que ainda ronda o espaço circunscrito de concreto aberto, de planos retos, racionalizados pelas circunstâncias.
Ele como vendedor de café, sempre acordava bem humorado, a olhar para o sol e não para sua casa (imaginariamente algo que se perdeu num recorte de novela das oito, o uísque sempre pronto para tomar após um dia de estresse).
Ele só vende café, e sua simplicidade se faz na hora de sua sobrevivência ser vencida a cada dia em que acorda de bem com a vida. O melhor café do mundo, cumprimentado por seus fregueses com um sorriso, o espírito elevado de um homem sábio, que atravessa meia cidade em cima de uma bicicleta pesada, driblando a falta de ciclovias e motoristas impulsivos.
A usina se perde em cheio na extravagância do pôr do sol, e ainda se ouve a sirene das dezoito horas, enquanto fecha suas portas encerrando mais um dia de trabalho. As bicicletas em massa se movem, misturando-se momento clímax de saída, o homem do café já está em sua casa, preparando maravilhas para seu café mágico do dia seguinte.
Justo ou não, o mundo segue seu curso, e subjetivamente os destinos de seus moradores é o de coexistir com todas as suas diferenças.
Josette Lassance
Junho de 2006
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