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Thursday, June 29, 2006

À SOMBRA DO HORÁRIO

Domingo. O sol não aparece igual, tem um sabor diferente, um gosto de fruto, fruta mais silvestre, gosto da chuva deixado pela tarde de sábado,

Subi a rua para comprar pão, uma bicicleta vermelha no portão enferrujado de uma casa me chamou atenção, ela parecia livre, sem cadeados, e a casa se refugiava no final do terreno, um jambeiro deixava cair suas flores azedas formando um tapete pelo chão, a mesma cor da cereja, a tonalidade da bicicleta, o banco feito de juncos embaixo da sombra. Minha vontade era de ficar.

Domingo, por ter um sabor diferente, nos faz diferentes da paisagem em si. Todos os dias passo por aquela casa, a bicicleta inclusa livre, vermelha como uma cereja, o banco feito de juncos abaixo da sombra, a casa com a mesma sombra do horário em que me desloco para a padaria, menos a vontade de ficar.

A vontade de ficar é em si, livre, inclusa no domingo, como o sol que não aparece igual a todos os dias, um fruto proibido, sentar é tão simples e tão de complexo sentido que meu olhar apenas se desloca entre a vontade e o seguir, o pão é o percurso, o objetivo da saída, do passeio pela calçada, pelo olhar atravessando a matéria das cores, a roda da bicicleta, seus raios como o do sol, sua cor, entre a cereja e o chão florido, cor do tapete úmido, formado pelo jambeiro, fruto mais silvestre, gosto da chuva deixado pela tarde de sábado.

O banco de juncos me convida para uma conversa, um monólogo, um discurso, as palavras soltas, livres como a bicicleta sem cadeado, incluso o silêncio e o frescor da sombra, menos o pão ainda não comprado, obstruído pela passagem, o entrar no jardim, um jardim trancado por um portão enferrujado, mas uma vontade imensa de ficar e continuar minha conversa íntima, um deslocamento entre o pensamento e a não obstrução que o ruído causa, menos o distúrbio de um dia comum de semana, impróprio para um domingo convidativo de um jardim a me esperar sentar-me em suas dúvidas e comodidades, um pedacinho de oásis de terreno solto, desamarrado do concreto armado, um sabor diferenciado de destino, não o de comprar pão ao subir a rua, mas encontrar o paraíso e me deslocar para o silêncio de mim mesma, monólogo tecido próximo a uma casa num final de terreno tranqüilo de um início de uma manhã de domingo.

A bicicleta vermelha, parada, não cansada, uma bicicleta que ao adornar uma micro paisagem de descanso, ajuda o jambeiro a colorir o verde escuro sombreado pelas folhas grandes e pelas folhas amareladas caídas no chão junto ao imenso tapete, um tapete que podia voar e me levar às nuvens, um tapete feito de flores de um pequeno jardim.

Mas o gosto de chuva deixada pela tarde, o gosto silvestre é feito de uma efêmera passagem pela rua num trajeto comum de ir comprar um pão na padaria, que por acaso foi num domingo, que não é diferente por ser domingo um dia que parece ter um sol de uma outra tonalidade, a bicicleta vermelha poderia não estar ali, encostada num muro cheio de formigas tachis, e um portão enferrujado, onde o cachorro sempre por mijar no mesmo lugar fez uma enorme fenda, a fenda punhal do ferro se desfazendo numa lança, uma espada de um guerreiro grego, lugar onde o mijo carcomeu com seu ácido líquido, um pedaço do portão.

O banco ainda é convidativo, juncos, sombras, flores, tapetes, jambeiros, bicicleta vermelha, gosto de cereja, domingo, tudo parece tão familiar que respiro fundo e sinto o cheiro de almíscar me invadindo, parecido como cheiro que algumas tardes têm em comum, em que o sol se atira certeiro sobre a parte mais macia de seu limbo e nos transporta a uma sensação em que tudo parece um imenso lago, tranqüilo, reverberando sua imagem sobre sua margem, um grande cosmos de plantas e flores, e o gosto ingerido de uma manhã fresca, segundos de vida intensificados pela vontade de ficar, livre de ter aonde ir.

josette lassance

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