Entre samaúmas e cerejeiras
Josette Lassance,
Outubro, 2006
Vivenciar este período, outubro, pleno calor, no ar, uma atmosfera distante do que poderia parecer primavera, mais precisamente o outono, já não podemos passar despercebidamente por uma mudança na pequena mostra de nossa floresta: as samaumeiras, que aparentemente em flor, com suas sementes aladas viajando por além da rodovia acabam por parecer um espetáculo de flores.
Não podemos captar com os mesmos olhos, os rituais de apreciação, como os japoneses em seu hanami, nada que nos faça cortar em nossas rotinas, onde não paramos, exceto forjados por um engarrafamento impune, o que nos divide em algumas imagens sobrepostas de um visual japonês e uma rua fragmentada.
Até mesmo porque as cerejeiras só florescem uma vez ao ano e dura cerca de uma semana. Suas folhas se vão com a chegada do outono. Enquanto isso, as samaumeiras cumprem o seu ciclo. E fornecem algum agrado para os pássaros gritarem.
Vi o semblante no centro da pista: o gramado bem aparado, as sementes aladas, cobrindo-lhes o chão, como um tapete esbranquiçado. Gostaria que brotasse dali uma “pequena-grande” floresta de samaúmas, e se fizesse um parque no centro da rua para nos alimentar de verde e sombra, nesses verões tão secos. Mas a arquitetura não comporta tal sistema, e um árido tapete, banhado por intermitentes mangueiras de um carro pipa, se expõe como receptor dos raios solares, e se espalha pelos capôs pintados a tintas industriais dos automóveis modernos.
Ao contrário de uma floresta, a cidade cria corpos que se dispersam entre pequenos blocos de concreto, e simulam minusculamente uma sintonia fora de forma, encruzilhada, entre antenas de tv e instalações elétricas; nenhum quintal, nenhuma rosa sequer num vaso de janela, ou sinal de que se possa usufruir um jardim, exceto pelas ervas daninhas nascendo entre as rachaduras das mal formadas calçadas.
Mas a centenária árvore dá seus frutos, pelo menos joga ao acaso entre as facetas urbanas, suas “flores” mal dormidas que mimetizam uma singela imagem distorcida de uma suposta cerejeira, tal qual num outro lado do planeta surge entre a primavera, encantando pessoas apressadas.
Que não seja o caminho do Samurai, esse percurso cíclico o qual eu faço todos os dias pela BR, segundo, o escritor Inazo Nitobe, em referência ao período das guerras, quando a morte espreitava a qualquer momento. Não deixa de existir essa sensação do efêmero, dada a conduta diária de uma rodovia tão turbulenta, causar diariamente tantas mortes.
Vejo da janela do carro, sem correr mais o risco de entrar no passado e reviver o trajeto de um trem que interligava nossa cidade aos interiores, o passar de uma florada em intensa vida, coexistindo asfalto, poeira, fumaça e o sonho de se comemorar a passagem com um sorriso imaginário, entre sakurás e samaúmas.
Para os antigos samurais, não havia glória maior do que morrer num campo de batalha coberto de pétalas de cerejeira, ao contrário dos transeuntes, que desapercebidos das sementes, enxergam apenas seus caminhos, impostos pelo calor e a agonia de um verão seco.
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Monday, October 16, 2006
Friday, September 15, 2006
todos queremos deuses
voaria sim, como um anjo, talvez, não modificaria a paisagem, sobre aqueles secos ramos desfigurados do deserto, voaria sim, como um pássaro antigo, com os mesmos ferros de seus traços, o deus que queríamos ser, voaríamos em busca de zeus onde estivesse a magia de moldar os homens à sua imagem e semelhança.
na encosta da acrópole, todos os séculos reunidos nos extremos, o rosto fictício e posto em busto sobre os caminhos de todas as cidades, como as pedras de Roma e Grécia, o corpúsculo dos feitos heróicos de seus exércitos e de seus deuses.
erguidos sobre a silenciosa cúpula, os elmos dos gladiadores mortos em batalha, a divertida cena, inóspita batalha sobre as arenas.
o caos que resta nos cemitérios do mundo estão invadindo as ruas em fórmulas secretas de ideologias, sepulcros de palavras sob e sobre, sob e sobre os muros vencidos.
as bigas sobre o asfalto, entediadas dos engarrafamentos, os leões soltos, o templo aberto, a fome das platéias, o sorrisos do políticos acenam para os deuses, a violência da cabeça cortada, o ciúme dos vencidos, a casa da loucura, o labirinto, o poder.
todos queremos deuses. precisamos de suas máscaras para esconder-nos de nossas torturas, aliviarmos a dor do infinito, para eternizarmo-nos diante da desilusão.
todos queremos deuses.
voaria sim, como um anjo, talvez, não modificaria a paisagem, sobre aqueles secos ramos desfigurados do deserto, voaria sim, como um pássaro antigo, com os mesmos ferros de seus traços, o deus que queríamos ser, voaríamos em busca de zeus onde estivesse a magia de moldar os homens à sua imagem e semelhança.
na encosta da acrópole, todos os séculos reunidos nos extremos, o rosto fictício e posto em busto sobre os caminhos de todas as cidades, como as pedras de Roma e Grécia, o corpúsculo dos feitos heróicos de seus exércitos e de seus deuses.
erguidos sobre a silenciosa cúpula, os elmos dos gladiadores mortos em batalha, a divertida cena, inóspita batalha sobre as arenas.
o caos que resta nos cemitérios do mundo estão invadindo as ruas em fórmulas secretas de ideologias, sepulcros de palavras sob e sobre, sob e sobre os muros vencidos.
as bigas sobre o asfalto, entediadas dos engarrafamentos, os leões soltos, o templo aberto, a fome das platéias, o sorrisos do políticos acenam para os deuses, a violência da cabeça cortada, o ciúme dos vencidos, a casa da loucura, o labirinto, o poder.
todos queremos deuses. precisamos de suas máscaras para esconder-nos de nossas torturas, aliviarmos a dor do infinito, para eternizarmo-nos diante da desilusão.
todos queremos deuses.
Tuesday, September 12, 2006
Horizonte silencioso
Não conheci Maria Lúcia Medeiros, nunca fomos apresentadas, e se fomos, no máximo, o mínimo de amigas, apenas o laço de escribas, um olhar pelo lado numa das feiras de livros, mandei alguém entregar-lhe um livro meu, ela agradeceu longinquamente, mais algo comum que tínhamos, a timidez, maldita timidez, jamais fomos apresentadas, jamais tive coragem de dar um passo qualquer ou dar-lhe um sorriso.
Mas ganhei de presente “Horizonte silencioso” de aniversário, e no mesmo dia li, encontro raro este, pude sentir a profundidade de seu trabalho, no dia em que a vi, gostaria de ter conversado sobre ele, sobre seus personagens, sobre sua vida, sobre seu lirismo maduro, sua maneira silenciosa de sentir as coisas, numa quase sutil definição de intimidade com as minúcias, um quase passado na memória, frias noites, dias quentes, tranqüilidade, a felicidade impressa em papéis guardados.
Mas não consegui, “o medo de morrer fazia-lhe procurar a mãe, mirá-la enquanto ela varria as folhas secas do quintal, beber-lhe o espírito calmo, tolerante, armazenar serenidade para atravessar as dificuldades”, parece-me sempre que Maria Lúcia fora calma em sua vida, uma impressão que não me abandonará nunca, talvez tenha lido apenas uma impressão, talvez queira buscar algo mais além do que posso, por não tê-la conhecido, recortes de seus recortes, retratos de suas imagens recolhidas daquele dia em que quase a interceptei com minha curiosidade, vontade tardia que o tempo implacável apagará, mas sua magia não, suas palavras estarão além desse instante estúpido em que não arrisquei, um horizonte silencioso feito de destino.
Agora vejo que minhas palavras estão frias, porque perdemos alguém muito importante, “tua noite inacessível. Teus braços abertos”, “...e assim olhavas pela derradeira vez as portas do Paraíso e então sonhavas...” . para Maria Lúcia, onde estiver,
Josette Lassance
Não conheci Maria Lúcia Medeiros, nunca fomos apresentadas, e se fomos, no máximo, o mínimo de amigas, apenas o laço de escribas, um olhar pelo lado numa das feiras de livros, mandei alguém entregar-lhe um livro meu, ela agradeceu longinquamente, mais algo comum que tínhamos, a timidez, maldita timidez, jamais fomos apresentadas, jamais tive coragem de dar um passo qualquer ou dar-lhe um sorriso.
Mas ganhei de presente “Horizonte silencioso” de aniversário, e no mesmo dia li, encontro raro este, pude sentir a profundidade de seu trabalho, no dia em que a vi, gostaria de ter conversado sobre ele, sobre seus personagens, sobre sua vida, sobre seu lirismo maduro, sua maneira silenciosa de sentir as coisas, numa quase sutil definição de intimidade com as minúcias, um quase passado na memória, frias noites, dias quentes, tranqüilidade, a felicidade impressa em papéis guardados.
Mas não consegui, “o medo de morrer fazia-lhe procurar a mãe, mirá-la enquanto ela varria as folhas secas do quintal, beber-lhe o espírito calmo, tolerante, armazenar serenidade para atravessar as dificuldades”, parece-me sempre que Maria Lúcia fora calma em sua vida, uma impressão que não me abandonará nunca, talvez tenha lido apenas uma impressão, talvez queira buscar algo mais além do que posso, por não tê-la conhecido, recortes de seus recortes, retratos de suas imagens recolhidas daquele dia em que quase a interceptei com minha curiosidade, vontade tardia que o tempo implacável apagará, mas sua magia não, suas palavras estarão além desse instante estúpido em que não arrisquei, um horizonte silencioso feito de destino.
Agora vejo que minhas palavras estão frias, porque perdemos alguém muito importante, “tua noite inacessível. Teus braços abertos”, “...e assim olhavas pela derradeira vez as portas do Paraíso e então sonhavas...” . para Maria Lúcia, onde estiver,
Josette Lassance
Viajar quase sempre nos traz à tona nossos melhores desejos enterrados…
Acordar tendo a insônia como referencial teórico para um dia de possíveis ameaças do ofício, nos traz a cena de uma tumultuada tempestade. Mas na quinta-feira tudo acordou normal, o céu liso de idéias, sem a tela do computador naquele tom azul do protetor de tela. Acordar, sim, mas para viajar, numa estrada ainda crua porque apesar do asfalto novo, alguns deslizes advindos sabe-se lá, se das chuvas ou da fragmentação devido à sua superficialidade, ou do uso freqüente de seus longos percursos entre carros pesados e carros de passeio. A estrada trouxe barulho ao atrito dos pneus do carro em que me encontrava. E de encontrão mesmo veio a paisagem meio estéreo da região, apesar do verão bombando, cenas de igarapés mortos por uma superfície embarreada, dificuldades da vida, igarapés enterrados ao longo das vias, mão e contramão, igarapés mortos por ausências de tubulações que viabilizassem sua correnteza. Mas tudo bem, a estrada serviu e ainda está servindo de lazer e trabalho (apesar de indícios de deterioração), porque facilitou a vida de alguns, abrindo espaço de lazer a outros, enfim, nem tudo é perfeito.
Cheguei à tona numa cidade à beira do rio. Calor abafado, bicicletas, motocicletas, carros, pessoas, pós-círio, um movimento tumultuado com ânsia de votos, circulando atormentados fluxos na beira do cais. Peixe, lama, carne de capivara salgada, panelas e galinhas sujas de excremento, quase mortas num paneiro, castigadas pela seca, aguardavam sem ternura alguém comprá-las, misturadas às vendas de sandálias de borracha, alho poró, tomates, patos engaiolados e redes bordadas.
Passando esse ritual de ir à feira, os preços convidativos e iguarias deliciosas como o mingal de miriti e de açaí, formávamos um grupo pequeno de quatro pessoas, e mais um senhor que nos levaria aos furos e às casas dos ribeirinhos.
Subimos na embarcação típica da região, uma espécie de lancha meio barco, criativamente apelidada de “rabeta”, uma delícia de velocidade, uma delícia de viagem, uma delícia de primitiva sensação de libertar-se daquele emaranhado de pedaço de cidade. Lá, o rio largo, corpulento trazia em sua margem uma selvagem vegetação, entre açaís, jambeiros, miritizeiros e árvores que eu desconhecia, mas que traziam em suas extremidades uma quantidade exuberante de ninhos de japiins.
A maré ainda não se completara em seu ciclo de enchente, entretanto, a beleza líquida esvaziaria meu olhar das estradas de asfalto quente e me jogariam seu frescor alinhavado com a beleza de costurar-se entre os caules das árvores. Um paraíso ainda não perdido, tão próximo ainda de nossas próximas viagens…
Ouvi então um ronco ensurdecedor, ao pararmos em nossa primeira casa de visita. Era o ronco vazio de uma desesperada serra elétrica matando os espécimes próximos ao furo. Perguntei ao homem que nos guiava rio acima, o porquê dessa devastação tão intensa em um lugar que juraria não existir necessidade de corte, visto que não havia árvores ou serrarias, gado, ou plantação de qualquer outra serventia.
Respondeu-me subitamente que era para abrigar uma criação de búfalos, e a terra era de um empresário de setenta anos que além de lidar com outros inúmeros empreendimentos, estaria ali para derrubar açaizeiros, árvores de mangue e outras mais árvores que pudessem atrapalhar seu caminho.
Na outra margem, a casa de madeira, o cachorro vira-lata e uma família inteira nos esperavam para nos contar com detalhes, de seus planos auto-sustentáveis, incorporando sua criação de peixes, sua plantação quase silvestre de açaís, de mandioca, seu apiário, sua criação de porcos, patos e galinhas, entre outras coisas mais, suas reivindicações devidamente organizadas e seus projetos juntamente com os governos, de manter a quase integridade de sua harmonia com sua natureza ribeirinha.
Ou seja, esse homem, acostumado à sua essência de pescador, coletor, já consegue, felizmente possuir, não totalmente, pois ainda faltam alguns pontos para melhorar, porque ainda pude perceber latas vazias entre pets e tubos de creme dental jogados no rio. Mas ainda que tenha a construir o que falta em sua consciência, ele, o homem ribeirinho está no caminho certo.
Depois visitamos mais casas e mais casas. Cada uma delas com sua peculiaridade, mas todas com um sorriso aberto para nos receber. O banho de rio aliviou o calor, um tronco de miriti amarrado a alguns paus serviam de cais para as embarcações, em sua maioria eram “rabetas” e quase sempre ao lado de cada uma delas, um “casquinho”, uma espécie de canoa em miniatura, fazia parte das inúmeras formas de locomoção, estas mais apropriadas para percursos mais curtos.
No ar havia uma atmosfera de silêncio, enquanto uma andorinha com as asas azuladas cortava a paisagem, após deixar seus filhotes em sua casinha de madeira. Uma casinha desenhada pelo homem, recortada de madeira e pendurada na árvore. Na mesma árvore, uma placa para que não jogassem lixo no rio.
Na sala de uma casa, ao entrar, vi uma gaiola de miriti, minúscula, abrigava um pássaro “brabo”, assim definiria mais tarde um pescador dono do pássaro, um desespero olhar para aquelas asas machucadas e aqueles vôos quebrados. Parecia não ir a lugar nenhum, atravessar o nada, para cantar?
Almoçamos depois de um longo percurso, uma sarda assada e depois fomos conhecer a “usina” que beneficiaria o açaí e serviria de energia, em mais um projeto com o governo. Esses ribeirinhos trabalhavam num alambique, desativado após algum tempo por motivos desconhecidos, mas o que importa é que ninguém desistiu de sobreviver.
As crianças na escola, as mulheres ao lado de seus homens, conseguiram estabelecer organizadamente suas tarefas e tocar a vida, mas sem deixar de prazerosamente compartilhar de seus momentos mais felizes.
josette lassance
setembro, 2006
Acordar tendo a insônia como referencial teórico para um dia de possíveis ameaças do ofício, nos traz a cena de uma tumultuada tempestade. Mas na quinta-feira tudo acordou normal, o céu liso de idéias, sem a tela do computador naquele tom azul do protetor de tela. Acordar, sim, mas para viajar, numa estrada ainda crua porque apesar do asfalto novo, alguns deslizes advindos sabe-se lá, se das chuvas ou da fragmentação devido à sua superficialidade, ou do uso freqüente de seus longos percursos entre carros pesados e carros de passeio. A estrada trouxe barulho ao atrito dos pneus do carro em que me encontrava. E de encontrão mesmo veio a paisagem meio estéreo da região, apesar do verão bombando, cenas de igarapés mortos por uma superfície embarreada, dificuldades da vida, igarapés enterrados ao longo das vias, mão e contramão, igarapés mortos por ausências de tubulações que viabilizassem sua correnteza. Mas tudo bem, a estrada serviu e ainda está servindo de lazer e trabalho (apesar de indícios de deterioração), porque facilitou a vida de alguns, abrindo espaço de lazer a outros, enfim, nem tudo é perfeito.
Cheguei à tona numa cidade à beira do rio. Calor abafado, bicicletas, motocicletas, carros, pessoas, pós-círio, um movimento tumultuado com ânsia de votos, circulando atormentados fluxos na beira do cais. Peixe, lama, carne de capivara salgada, panelas e galinhas sujas de excremento, quase mortas num paneiro, castigadas pela seca, aguardavam sem ternura alguém comprá-las, misturadas às vendas de sandálias de borracha, alho poró, tomates, patos engaiolados e redes bordadas.
Passando esse ritual de ir à feira, os preços convidativos e iguarias deliciosas como o mingal de miriti e de açaí, formávamos um grupo pequeno de quatro pessoas, e mais um senhor que nos levaria aos furos e às casas dos ribeirinhos.
Subimos na embarcação típica da região, uma espécie de lancha meio barco, criativamente apelidada de “rabeta”, uma delícia de velocidade, uma delícia de viagem, uma delícia de primitiva sensação de libertar-se daquele emaranhado de pedaço de cidade. Lá, o rio largo, corpulento trazia em sua margem uma selvagem vegetação, entre açaís, jambeiros, miritizeiros e árvores que eu desconhecia, mas que traziam em suas extremidades uma quantidade exuberante de ninhos de japiins.
A maré ainda não se completara em seu ciclo de enchente, entretanto, a beleza líquida esvaziaria meu olhar das estradas de asfalto quente e me jogariam seu frescor alinhavado com a beleza de costurar-se entre os caules das árvores. Um paraíso ainda não perdido, tão próximo ainda de nossas próximas viagens…
Ouvi então um ronco ensurdecedor, ao pararmos em nossa primeira casa de visita. Era o ronco vazio de uma desesperada serra elétrica matando os espécimes próximos ao furo. Perguntei ao homem que nos guiava rio acima, o porquê dessa devastação tão intensa em um lugar que juraria não existir necessidade de corte, visto que não havia árvores ou serrarias, gado, ou plantação de qualquer outra serventia.
Respondeu-me subitamente que era para abrigar uma criação de búfalos, e a terra era de um empresário de setenta anos que além de lidar com outros inúmeros empreendimentos, estaria ali para derrubar açaizeiros, árvores de mangue e outras mais árvores que pudessem atrapalhar seu caminho.
Na outra margem, a casa de madeira, o cachorro vira-lata e uma família inteira nos esperavam para nos contar com detalhes, de seus planos auto-sustentáveis, incorporando sua criação de peixes, sua plantação quase silvestre de açaís, de mandioca, seu apiário, sua criação de porcos, patos e galinhas, entre outras coisas mais, suas reivindicações devidamente organizadas e seus projetos juntamente com os governos, de manter a quase integridade de sua harmonia com sua natureza ribeirinha.
Ou seja, esse homem, acostumado à sua essência de pescador, coletor, já consegue, felizmente possuir, não totalmente, pois ainda faltam alguns pontos para melhorar, porque ainda pude perceber latas vazias entre pets e tubos de creme dental jogados no rio. Mas ainda que tenha a construir o que falta em sua consciência, ele, o homem ribeirinho está no caminho certo.
Depois visitamos mais casas e mais casas. Cada uma delas com sua peculiaridade, mas todas com um sorriso aberto para nos receber. O banho de rio aliviou o calor, um tronco de miriti amarrado a alguns paus serviam de cais para as embarcações, em sua maioria eram “rabetas” e quase sempre ao lado de cada uma delas, um “casquinho”, uma espécie de canoa em miniatura, fazia parte das inúmeras formas de locomoção, estas mais apropriadas para percursos mais curtos.
No ar havia uma atmosfera de silêncio, enquanto uma andorinha com as asas azuladas cortava a paisagem, após deixar seus filhotes em sua casinha de madeira. Uma casinha desenhada pelo homem, recortada de madeira e pendurada na árvore. Na mesma árvore, uma placa para que não jogassem lixo no rio.
Na sala de uma casa, ao entrar, vi uma gaiola de miriti, minúscula, abrigava um pássaro “brabo”, assim definiria mais tarde um pescador dono do pássaro, um desespero olhar para aquelas asas machucadas e aqueles vôos quebrados. Parecia não ir a lugar nenhum, atravessar o nada, para cantar?
Almoçamos depois de um longo percurso, uma sarda assada e depois fomos conhecer a “usina” que beneficiaria o açaí e serviria de energia, em mais um projeto com o governo. Esses ribeirinhos trabalhavam num alambique, desativado após algum tempo por motivos desconhecidos, mas o que importa é que ninguém desistiu de sobreviver.
As crianças na escola, as mulheres ao lado de seus homens, conseguiram estabelecer organizadamente suas tarefas e tocar a vida, mas sem deixar de prazerosamente compartilhar de seus momentos mais felizes.
josette lassance
setembro, 2006
Thursday, June 29, 2006
À SOMBRA DO HORÁRIO
Domingo. O sol não aparece igual, tem um sabor diferente, um gosto de fruto, fruta mais silvestre, gosto da chuva deixado pela tarde de sábado,
Subi a rua para comprar pão, uma bicicleta vermelha no portão enferrujado de uma casa me chamou atenção, ela parecia livre, sem cadeados, e a casa se refugiava no final do terreno, um jambeiro deixava cair suas flores azedas formando um tapete pelo chão, a mesma cor da cereja, a tonalidade da bicicleta, o banco feito de juncos embaixo da sombra. Minha vontade era de ficar.
Domingo, por ter um sabor diferente, nos faz diferentes da paisagem em si. Todos os dias passo por aquela casa, a bicicleta inclusa livre, vermelha como uma cereja, o banco feito de juncos abaixo da sombra, a casa com a mesma sombra do horário em que me desloco para a padaria, menos a vontade de ficar.
A vontade de ficar é em si, livre, inclusa no domingo, como o sol que não aparece igual a todos os dias, um fruto proibido, sentar é tão simples e tão de complexo sentido que meu olhar apenas se desloca entre a vontade e o seguir, o pão é o percurso, o objetivo da saída, do passeio pela calçada, pelo olhar atravessando a matéria das cores, a roda da bicicleta, seus raios como o do sol, sua cor, entre a cereja e o chão florido, cor do tapete úmido, formado pelo jambeiro, fruto mais silvestre, gosto da chuva deixado pela tarde de sábado.
O banco de juncos me convida para uma conversa, um monólogo, um discurso, as palavras soltas, livres como a bicicleta sem cadeado, incluso o silêncio e o frescor da sombra, menos o pão ainda não comprado, obstruído pela passagem, o entrar no jardim, um jardim trancado por um portão enferrujado, mas uma vontade imensa de ficar e continuar minha conversa íntima, um deslocamento entre o pensamento e a não obstrução que o ruído causa, menos o distúrbio de um dia comum de semana, impróprio para um domingo convidativo de um jardim a me esperar sentar-me em suas dúvidas e comodidades, um pedacinho de oásis de terreno solto, desamarrado do concreto armado, um sabor diferenciado de destino, não o de comprar pão ao subir a rua, mas encontrar o paraíso e me deslocar para o silêncio de mim mesma, monólogo tecido próximo a uma casa num final de terreno tranqüilo de um início de uma manhã de domingo.
A bicicleta vermelha, parada, não cansada, uma bicicleta que ao adornar uma micro paisagem de descanso, ajuda o jambeiro a colorir o verde escuro sombreado pelas folhas grandes e pelas folhas amareladas caídas no chão junto ao imenso tapete, um tapete que podia voar e me levar às nuvens, um tapete feito de flores de um pequeno jardim.
Mas o gosto de chuva deixada pela tarde, o gosto silvestre é feito de uma efêmera passagem pela rua num trajeto comum de ir comprar um pão na padaria, que por acaso foi num domingo, que não é diferente por ser domingo um dia que parece ter um sol de uma outra tonalidade, a bicicleta vermelha poderia não estar ali, encostada num muro cheio de formigas tachis, e um portão enferrujado, onde o cachorro sempre por mijar no mesmo lugar fez uma enorme fenda, a fenda punhal do ferro se desfazendo numa lança, uma espada de um guerreiro grego, lugar onde o mijo carcomeu com seu ácido líquido, um pedaço do portão.
O banco ainda é convidativo, juncos, sombras, flores, tapetes, jambeiros, bicicleta vermelha, gosto de cereja, domingo, tudo parece tão familiar que respiro fundo e sinto o cheiro de almíscar me invadindo, parecido como cheiro que algumas tardes têm em comum, em que o sol se atira certeiro sobre a parte mais macia de seu limbo e nos transporta a uma sensação em que tudo parece um imenso lago, tranqüilo, reverberando sua imagem sobre sua margem, um grande cosmos de plantas e flores, e o gosto ingerido de uma manhã fresca, segundos de vida intensificados pela vontade de ficar, livre de ter aonde ir.
josette lassance
Domingo. O sol não aparece igual, tem um sabor diferente, um gosto de fruto, fruta mais silvestre, gosto da chuva deixado pela tarde de sábado,
Subi a rua para comprar pão, uma bicicleta vermelha no portão enferrujado de uma casa me chamou atenção, ela parecia livre, sem cadeados, e a casa se refugiava no final do terreno, um jambeiro deixava cair suas flores azedas formando um tapete pelo chão, a mesma cor da cereja, a tonalidade da bicicleta, o banco feito de juncos embaixo da sombra. Minha vontade era de ficar.
Domingo, por ter um sabor diferente, nos faz diferentes da paisagem em si. Todos os dias passo por aquela casa, a bicicleta inclusa livre, vermelha como uma cereja, o banco feito de juncos abaixo da sombra, a casa com a mesma sombra do horário em que me desloco para a padaria, menos a vontade de ficar.
A vontade de ficar é em si, livre, inclusa no domingo, como o sol que não aparece igual a todos os dias, um fruto proibido, sentar é tão simples e tão de complexo sentido que meu olhar apenas se desloca entre a vontade e o seguir, o pão é o percurso, o objetivo da saída, do passeio pela calçada, pelo olhar atravessando a matéria das cores, a roda da bicicleta, seus raios como o do sol, sua cor, entre a cereja e o chão florido, cor do tapete úmido, formado pelo jambeiro, fruto mais silvestre, gosto da chuva deixado pela tarde de sábado.
O banco de juncos me convida para uma conversa, um monólogo, um discurso, as palavras soltas, livres como a bicicleta sem cadeado, incluso o silêncio e o frescor da sombra, menos o pão ainda não comprado, obstruído pela passagem, o entrar no jardim, um jardim trancado por um portão enferrujado, mas uma vontade imensa de ficar e continuar minha conversa íntima, um deslocamento entre o pensamento e a não obstrução que o ruído causa, menos o distúrbio de um dia comum de semana, impróprio para um domingo convidativo de um jardim a me esperar sentar-me em suas dúvidas e comodidades, um pedacinho de oásis de terreno solto, desamarrado do concreto armado, um sabor diferenciado de destino, não o de comprar pão ao subir a rua, mas encontrar o paraíso e me deslocar para o silêncio de mim mesma, monólogo tecido próximo a uma casa num final de terreno tranqüilo de um início de uma manhã de domingo.
A bicicleta vermelha, parada, não cansada, uma bicicleta que ao adornar uma micro paisagem de descanso, ajuda o jambeiro a colorir o verde escuro sombreado pelas folhas grandes e pelas folhas amareladas caídas no chão junto ao imenso tapete, um tapete que podia voar e me levar às nuvens, um tapete feito de flores de um pequeno jardim.
Mas o gosto de chuva deixada pela tarde, o gosto silvestre é feito de uma efêmera passagem pela rua num trajeto comum de ir comprar um pão na padaria, que por acaso foi num domingo, que não é diferente por ser domingo um dia que parece ter um sol de uma outra tonalidade, a bicicleta vermelha poderia não estar ali, encostada num muro cheio de formigas tachis, e um portão enferrujado, onde o cachorro sempre por mijar no mesmo lugar fez uma enorme fenda, a fenda punhal do ferro se desfazendo numa lança, uma espada de um guerreiro grego, lugar onde o mijo carcomeu com seu ácido líquido, um pedaço do portão.
O banco ainda é convidativo, juncos, sombras, flores, tapetes, jambeiros, bicicleta vermelha, gosto de cereja, domingo, tudo parece tão familiar que respiro fundo e sinto o cheiro de almíscar me invadindo, parecido como cheiro que algumas tardes têm em comum, em que o sol se atira certeiro sobre a parte mais macia de seu limbo e nos transporta a uma sensação em que tudo parece um imenso lago, tranqüilo, reverberando sua imagem sobre sua margem, um grande cosmos de plantas e flores, e o gosto ingerido de uma manhã fresca, segundos de vida intensificados pela vontade de ficar, livre de ter aonde ir.
josette lassance
O HOMEM DO CAFÉ
Mário de prata. Assim era denominado o homem que servia cafés. Ele habitava em seus redemoinhos de pedra, entre gigantes e imaginativos quadros de Picasso, colados dos sonhos de tv, a sala imaginativa desordem, os quadros de artistas consagrados, servia café em frente da usina, no turbilhão onde as bicicletas se encontram numa paradisíaca parada de ônibus.
Se havia para onde voltar seria o lugar onde colocava sua máquina de fazer café todos os dias. Um lugar escondido de todos. Acordava às cinco da manhã com sua mulher imaginária e esquentava o fogo. A lenha coletada pelas ruas. Pedaços de paus fortes, tirava a madeira dos esqueletos dos sofás jogados, base de geladeiras, pernas de cadeira, livros velhos, tentava antes decifrar seus códigos, mal sabia soletrar, via as páginas vazias de conteúdo e milhões de letrinhas desconexas.
Tudo iria para o fogo. Sem nenhum protocolo. E faria dali seu melhor café. Pegava sua bicicleta cargueira e punha-se a pedalar pelas ruas mais difíceis. Ficava olhando distraidamente, quando o sinal abria para os carros, para as paredes das casas, suas janelas, gostava de sentir-se em casa. As janelas tinham sensações familiares e eram como oásis perfeitos, as janelas azuis-claro em suas tonalidades mais amenas, principalmente, mesmo fechadas, traziam porções de ternura que fugiam à realidade intranqüila das ruas e da vida das pessoas. As janelas azuis sempre estavam acompanhadas de varandas e algumas porções de quintais com jasminzeiros floridos.
Ia para sua parada vender o café na usina. A usina tinha algo mais de cem anos, e suas letras ainda vivas, feitas num contorno de ferro em formas itálicas, trazia o cheiro de sua essência de usina. O próprio nome usina esvazia sua forma moderna e nos traz um desejo de lembrar de algo que se perdeu, e que está no ar, naquele pedaço de prédio amarelo-sinônimo de muros caiados, o barulho das máquinas, a cigarra ao meio dia, uma parte antiga no meio da cidade, um romântico vazio que ainda ronda o espaço circunscrito de concreto aberto, de planos retos, racionalizados pelas circunstâncias.
Ele como vendedor de café, sempre acordava bem humorado, a olhar para o sol e não para sua casa (imaginariamente algo que se perdeu num recorte de novela das oito, o uísque sempre pronto para tomar após um dia de estresse).
Ele só vende café, e sua simplicidade se faz na hora de sua sobrevivência ser vencida a cada dia em que acorda de bem com a vida. O melhor café do mundo, cumprimentado por seus fregueses com um sorriso, o espírito elevado de um homem sábio, que atravessa meia cidade em cima de uma bicicleta pesada, driblando a falta de ciclovias e motoristas impulsivos.
A usina se perde em cheio na extravagância do pôr do sol, e ainda se ouve a sirene das dezoito horas, enquanto fecha suas portas encerrando mais um dia de trabalho. As bicicletas em massa se movem, misturando-se momento clímax de saída, o homem do café já está em sua casa, preparando maravilhas para seu café mágico do dia seguinte.
Justo ou não, o mundo segue seu curso, e subjetivamente os destinos de seus moradores é o de coexistir com todas as suas diferenças.
Josette Lassance
Junho de 2006
Mário de prata. Assim era denominado o homem que servia cafés. Ele habitava em seus redemoinhos de pedra, entre gigantes e imaginativos quadros de Picasso, colados dos sonhos de tv, a sala imaginativa desordem, os quadros de artistas consagrados, servia café em frente da usina, no turbilhão onde as bicicletas se encontram numa paradisíaca parada de ônibus.
Se havia para onde voltar seria o lugar onde colocava sua máquina de fazer café todos os dias. Um lugar escondido de todos. Acordava às cinco da manhã com sua mulher imaginária e esquentava o fogo. A lenha coletada pelas ruas. Pedaços de paus fortes, tirava a madeira dos esqueletos dos sofás jogados, base de geladeiras, pernas de cadeira, livros velhos, tentava antes decifrar seus códigos, mal sabia soletrar, via as páginas vazias de conteúdo e milhões de letrinhas desconexas.
Tudo iria para o fogo. Sem nenhum protocolo. E faria dali seu melhor café. Pegava sua bicicleta cargueira e punha-se a pedalar pelas ruas mais difíceis. Ficava olhando distraidamente, quando o sinal abria para os carros, para as paredes das casas, suas janelas, gostava de sentir-se em casa. As janelas tinham sensações familiares e eram como oásis perfeitos, as janelas azuis-claro em suas tonalidades mais amenas, principalmente, mesmo fechadas, traziam porções de ternura que fugiam à realidade intranqüila das ruas e da vida das pessoas. As janelas azuis sempre estavam acompanhadas de varandas e algumas porções de quintais com jasminzeiros floridos.
Ia para sua parada vender o café na usina. A usina tinha algo mais de cem anos, e suas letras ainda vivas, feitas num contorno de ferro em formas itálicas, trazia o cheiro de sua essência de usina. O próprio nome usina esvazia sua forma moderna e nos traz um desejo de lembrar de algo que se perdeu, e que está no ar, naquele pedaço de prédio amarelo-sinônimo de muros caiados, o barulho das máquinas, a cigarra ao meio dia, uma parte antiga no meio da cidade, um romântico vazio que ainda ronda o espaço circunscrito de concreto aberto, de planos retos, racionalizados pelas circunstâncias.
Ele como vendedor de café, sempre acordava bem humorado, a olhar para o sol e não para sua casa (imaginariamente algo que se perdeu num recorte de novela das oito, o uísque sempre pronto para tomar após um dia de estresse).
Ele só vende café, e sua simplicidade se faz na hora de sua sobrevivência ser vencida a cada dia em que acorda de bem com a vida. O melhor café do mundo, cumprimentado por seus fregueses com um sorriso, o espírito elevado de um homem sábio, que atravessa meia cidade em cima de uma bicicleta pesada, driblando a falta de ciclovias e motoristas impulsivos.
A usina se perde em cheio na extravagância do pôr do sol, e ainda se ouve a sirene das dezoito horas, enquanto fecha suas portas encerrando mais um dia de trabalho. As bicicletas em massa se movem, misturando-se momento clímax de saída, o homem do café já está em sua casa, preparando maravilhas para seu café mágico do dia seguinte.
Justo ou não, o mundo segue seu curso, e subjetivamente os destinos de seus moradores é o de coexistir com todas as suas diferenças.
Josette Lassance
Junho de 2006
Tuesday, March 21, 2006
O Encantamento
Naquele verde sustentado pelas vigas enferrujadas do edifício assim ele se vestiu, no silêncio o espelho se perfumava de brilho, aquela luz ocre cheia de varizes de teias de aranha diminuíam suas forças, ora entrava devagar a energia e se apagava como a madrugada, insano ele corria para o ferro de engomar, suas roupas tinham mistérios, seriam as únicas coisas com vida por aquelas ruas, ninguém duvida que por ali se pague o medo e se vingue dos padrões, ele é um homem pagão que mistura sua personalidade pérfida com todas as outras idades. Fuma um baseado atrás da cortina, de lá ele olha seu pequeno mundo, entre estrelas confinadas no seu ângulo quadrado de visão que ele submete a visões planetárias. Sua louça sanitária está suja e ele se depila no espelho do banheiro, três azulejos formam o triângulo da pia, depila-se ouvindo o rumor vivo das vilas próximas. Se aproxima do guarda-roupa como um viciado em sapatos, calças e meias, mas não é um viciado, a mesma poeira que perfura a cortina se destila na madeira pouco acetinada do móvel. Ali representa um personagem castrado, um homem, uma esperança de se manter vivo.
O imóvel é velho, úmido, abafado, seu ventilador alcança o ar e corta em mil dejetos a fumaça de sua maconha macerada, o telefone toca a meio fio da rua, o telefone público (seu espaço alvo de ser um projétil de seu vivo esperar ser um espaço privado) em meio ele desce desesperado por sua ligação. Atende, uma voz fina e preguiçosa do outro lado, ele responde com dificuldade mas sem nenhuma ternura.
Volta para o hall, pega seu elevador até o quarto andar e anda por seu quarto como se vagasse, divaga sobre as possibilidades de sua noite, enterrado ali vivo entre seus pertences, sem dinheiro algum que lhe alugue um verbo, que lhe tome uma bebida quente, que lhe pague um jantar decente, que conheça alguém que o deixe às alturas.
Na travessia do quarto para as paredes da sala seu cinismo o interrompe, e se eu não fosse, e se talvez fosse, e se talvez viesse, mas se não viesse? Em pausa agarra suas chaves perfumadas e dá um nó na garganta, sai sem remorsos.
Olha uma vitrine, o manequim é como um sapo morto ressequido, assim ele se sente e se ressente e pressente que sapos podem ser loucos, e que sua loucura o assombra, e que pode não ter a aparência de um sapo morto e que um dia foi um sapo apenas louco, não não é, aquele manequim se projeta em seu interior como um perfume que não sai, o perfume do corpo, o perfume original de sua pele... Ele não se diz mais nada, sai dali olhando para o chão atravessado, em riscos percebe que as membranas de seus dedos estão inchadas, que a calçada tem cortes e entram em suas saliências algumas ervas daninhas, que as calçadas enfim estão rachadas e que a terra se mistura à lama dos esgotos e que as pedras não são mais virgens, mas são pedras trituradas, partes artificiais de cimento dissolvidas por algum baque, pelo triturar dos carros... Mas não se conforma com o inchaço, não se conforma com seus braços, com seu rosto, acaba sentado no meio da marquise, debaixo olha para os fios soltos da última lâmpada rebentada, vê naquilo um gosto quente se ferir porque os fios se encontram e formam faíscas. Formar faíscas é cruzar o pensamento e imaginar que tudo pode ser que tudo pode crer e que sair dali nesse mesmo instante e tentar buscar esse destino pode ser o mesmo que modificar seu ponto de vista.
Ele sai dali à procura do que não tem, quer encontrar em outras pessoas o seu avesso, mas sem nexo percebe que as mesmas pessoas têm objetivos e esses objetivos estão tão bem enterrados em suas caixinhas cranianas mas que pulsam como sonhos, e os sonhos agora divididos entre o ideal e o real se misturam a mundos virtuais, onde os desejos passam por uma camada fina de torpor que se extasia a cada segundo como a faísca na ausência da lâmpada, e depois vazia volta para casa do mesmo jeito que saiu.
Ele, o único personagem dessa história tem registros repetidos, sem escrever em papel algum, sua razão tem ciúme que sua emoção o aliene e entre sem medo nesse mundo sem volta da esterilidade passional, inverso, emoção e razão se fundem sem limites, são linhas paralelas, linhas de dualidade que põem em risco seu processo de consenso.
Ele vê do olho mágico algo a se impor numa das ruas que caminha, alguém parado olhando para o silêncio, alguém que masturba sua turbulência, turvo adentra seu espírito e se observa o quanto desesperado alimenta-se desses desejos...
Ele deseja e vê. O ombro despido, a pele tem ânsia, o rosto escondido na sombra que se projeta um poste entre os fios emaranhados, rota de papagaios perdidos, o cabelo acompanhando o vento quase frio da madrugada, a pensar na solidão que faz olhar o destino de seus olhos um percorrer único, como não estar ali por exemplo, ficar fitando mas o pensamento cheio de palavras.
Assim ele viu alguém, prestes a conhecê-lo, estava ali como se o esperasse, e sem pressa ficou olhando na distância que se fez permitir-se e aproximar-se fazia parte de uma energia que nos instantes que se seguissem poderiam possuir um encanto próprio.
Ao perceber-se invadida por uma sensação perigosa ela se virou e o olhou nos olhos, sem vê-los inteiros, vívidos por umedecer-se involuntários, algo a fez caminhar pelo escuro e ele foi atrás e perguntou seu nome, ela viria assim quase sem nome por isso nada respondeu então beijaram-se, com a intensidade de suas esperanças, beijaram-se ali mesmo no asfalto e tudo se prendeu a um só choque, a lâmpada rebentada do alto da marquise, seus fios pegaram fogo, e o fogo cresceu como a barba dos judeus ortodoxos, cresceu e formou uma enorme mancha no céu escuro, um grande incêndio tomou conta daquela rua, então ouviram-se estrondos daquele beijo, daquele incêndio de fios ansiosos, explodiram as paredes, explodiram as vidraças, explodiram as cadeiras, explodiram as calçadas.
E nada mais se viu na manhã seguinte. Todos estavam desencan-tados.
Josette Lassance nasceu em Belém do Pará em 1962. Graduada em História e Artes Plásticas na UFPA. Pós graduada em Arte-Educação. Participou de várias publicações em revistas como: Fundo de Gaveta, Belém/PA (1982); Poesia do Grão Pará, Rio de Janeiro/RJ (2001); Carlegarius (2002); Revista Viva Vaia, Porto Alegre/RS (2003); Revista de Literatura Brasileira, Rio de Janeiro/RJ (2003); Pará Zero-Zero, Belém/PA (2004), entre outras. Nos últimos anos fez parte do Projeto Quarentena de Arte "Açúcar Invertido", Funarte - RJ (2002); Projeto Circuito Amazônia Celular de Cultura (2003); 49ª Feira do Livro de Porto Alegre (2004).
Livros Publicados
Vida de Bruxa - Poemas (1992)
Os Gatos Nus Passeiam sobre os Telhados Sujos - Contos (1994)
Galeria dos Maus - Poemas e Crônicas (1999)
Prazer Clandestino - (Cartões Fotográficos de Poesia 2001)
O Prédio Contos (2002)
No Último Desejo a Carne é Fria - Contos (junto a Olga Savary, Carlos Correa e Israel Guttemberg) (2005)
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